XX - Retorno ao mundo obscuro

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     Minha visão começa a ficar turva e consigo finalmente sentir aquela sensação de tontura e moleza nos músculos. A bebida do recipiente já quase se esvai e eu continuo a observar as ranhuras no teto. Ainda penso seriamente sobre o que Jeremi tentou me dizer mais cedo. Creio que realmente esteja perdendo a cabeça. Falando nela, estou começando a sentir algumas dores que me incomodam bastante. Creio que precise de um remédio, pois parece que a ressaca chegou junto com a embriaguez.
     Levanto-me rapidamente do sofá, porém vejo brevemente um vulto de cor escura que se envolve em minha tontura e me faz cair sentada no estofado novamente. Forço os olhos a fecharem e balanço a cabeça de um lado para o outro em movimentos rápidos para tentar manter o foco. Ergo-me lentamente para que consiga permanecer em pé e ter a mínima noção do quão dopada estou. É muito, por sinal.
     Tento caminhar em linha reta porém logo caio novamente ao chão por ter visto o vulto preto, desta vez levemente mais nítido.

— Não, não, não… Não de novo. Já fazem muitos anos. Eu não quero retornar. — Digo a mim mesma com a voz desengonçada por conta da bebida.

     Ponho-me em pé novamente e continuo a andar em direção a um pequeno armário de madeira próximo à mesa que costumo deixar meus pertences. Apanho a cartela de analgésicos e decido me apropriar de três deles. Esta dor de cabeça está me matando. Acumulo um resto de saliva em minha boca e engulo os comprimidos depressa. Os vultos se intensificam, então corro para apanhar meu guarda-chuva. Com ele em minha mão esquerda, a direita ainda segura a garrafa. Decido tomar um pouco mais para ajudar os comprimidos a descerem. Neste momento minha visão se distorce e consigo ver o vulto novamente, muito mais nítido desta vez, de um homem alto e esguio trajando um terno listrado e uma cartola.

— Saia da minha cabeça! — Grito atirando a garrafa contendo o álcool na figura que vejo.

     Obviamente o recipiente atravessa sem intervalos pela imagem e estilhaça o vidro em vários pedaços largados ao canto da sala juntamente com o álcool que se espalha pelo chão. A dor de cabeça se torna cada vez pior e me obriga a me ajoelhar sem forças para me manter em pé. Aos poucos ouço um zunido que gradativamente fica mais alto até que abro meus olhos novamente e me vejo envolta à escuridão total novamente. O ruído em meus ouvidos cessa e posso finalmente me levantar.

— Maldito Jeremi… Eu não gostaria de voltar aqui. Você me fez pensar demais. Mas desta vez não cairei.

     Caminho sem preocupações até a porta. Apesar da escuridão, sinto como se já soubesse onde ela está exatamente. Abro a mesma, contudo, ao invés de aparecer na floresta, apareci na réplica do meu quarto onde havia caído logo quando cheguei a este lugar. E falando em réplicas, consigo ver uma das minhas caída ao lado do banco onde costumava me sentar para me arrumar em frente à penteadeira. Não consigo dizer se está de fato morta ou apenas desmaiada, portanto me aproximo dela e viro seu corpo lentamente para cima. Vejo que seu rosto está completamente desfigurado. Inúmeros cortes e queimaduras foram feitos intencionalmente a si.

— Droga… Esta sucumbiu aos transtornos com a própria beleza. Certamente não se sentia boa o bastante em relação aos padrões sociais.

     Posiciono as pontas dos meus dedos em seu pescoço apenas para constatar que está de fato morta. Um fio de euforia me causa uma leve adrenalina. Então isso é sentir emoções novamente. Minha emoção está morta, mas vejo que ainda posso sentir algumas pequenas coisas. Se voltei para este mundo, é porque ele possui algo a me mostrar.
     Levanto-me e toco o espelho. A energia se transfere para o meu corpo e fecho meus olhos para sentí-la por inteiro. Eu os abro novamente e desta vez sim me encontro no lugar onde deveria começar. A floresta onde iniciei minha jornada, entretanto ela está bem diferente. Já não há mais folhas em tons arroxeados. Apenas árvores de madeira escura com galhos completamente desnudos. Nem mesmo no chão pode-se ver folha alguma que por ventura teria caído. Apenas terra suja e seca. O aroma doce que tomava conta do local também mudara e dera lugar a um odor azedo e podre abaixo do céu que agora é apenas uma imensidão escura contendo um emaranhado de nuvens acinzentadas.
     Decido caminhar até a mansão de Rosengrov. Preciso saber como o intrigante velhinho está antes de prosseguir. Caminho por alguns minutos até finalmente me aproximar do jardim imaculado do professor. Tudo parece no mais perfeito estado da mesma forma que estava quando estive aqui há tantos anos. Apresso-me até a porta e bato a aldrava rapidamente contra a madeira. A mesma se abre, dando-me a visão do pequeno professor trajando seu terno como de costume.

— Céus! Que tempo mais horrível. É melhor entrar, minha cara.
— Desculpe-me o incômodo novamente. — Digo enquanto adentro depressa. — Preciso de uma solução para tudo isto.
— Prossiga. — Solicita enquanto me conduz à sala e me indica para sentar no estofado fino que alí há.
— Eu fiz o que me recomendou. Encontrei o espelho de bolso. Porém não faço ideia do que ocorreu. Uma réplica surgiu e… Acho que fui morta pelo desgraçado. Tudo aconteceu extremamente rápido.
— Compreendo... Sempre é contada a mesma história.
— Como posso vencê-lo?
— É muito simples. Basta chegar mais longe do que havia chegado da última vez.
— Pode me explicar sobre isso?
— Desta vez que veio aqui você encontrou uma das suas, não? Pois bem. Ela foi a Amália que desistiu mais depressa entre todas. Na primeira dificuldade, a pobre infeliz sucumbiu à própria destruição. Este mundo está cheio de perdedoras. E com cada uma delas, há algo para se ver.
— Acho que desta vez entendi. Eu preciso ir. Obrigada por tudo, Sr. Rosengrov.
— Agradeça-me vencendo esta luta. Não sucumba às loucuras deste lugar. Elas sempre farão até mesmo o impossível para lhe tornar apenas mais uma das inúmeras que aqui vieram. Seja cautelosa.
— Estou ciente disto. Não precisaria sequer me dizer.
— Fique tranquila, minha cara. — Diz enquanto sorri para o meu olhar. — É apenas uma advertência amigável.
— Oh! — Suspiro surpresa. — Então é ele que o senhor representa aqui… Então é por isso que não foi afetado pela escuridão.
— Agora vá, Amália. Está ficando sem tempo. — Ele me apressa à medida que abre a porta da frente pela qual rapidamente sigo através para o mundo obscuro novamente.

Amália e o Mundo dos EspelhosWhere stories live. Discover now