XXIII - O brilho da esperança

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     Retiro-me do quarto e continuo a percorrer pelos corredores de madeira desta casa podre. Em pouco tempo, me deparo novamente com aquele vidro na parede ao lado de uma porta onde tive o desprazer de assistir uma réplica tirar sua própria vida de forma brutal e melancólica sem nada poder fazer. Coloco-me à frente do vidro transparente e vejo que o corpo ainda está abandonado no chão, porém desta vez não possuo expressão nenhuma ao assistir esta cena. Sinto-me completamente livre de empatia.

     Direciono-me à porta e giro a maçaneta na tentativa de abrí-la e, para a minha surpresa,ela agora está destrancada. Apesar de meus sentimentos estarem gélidos, tenho uma sensação extremamente mórbida ao adentrar este local. Um clima pesado como se tivesse sido eu mesma a cometer suicídio. Outra surpresa que tenho é perceber que o corpo ainda está inteiro e que não emana odor algum característico de decomposição. É como se o tempo tivesse parado durante todos estes anos que me ausentei.

     Decido me aproximar do corpo e me ajoelho para analisá-lo melhor. Deixo meu guarda-chuva no chão para que minhas mãos fiquem livres. Sua pele é extremamente pálida, gélida e seus braços estão completamente mutilados da mesma forma que havia visto anteriormente e há uma enorme mancha, que outrora foi uma poça de sangue que secou, na madeira abaixo dela. Algo que me chama atenção é uma sujeira estranha por debaixo das unhas de seus dedos. Há muita poeira e até mesmo farpas e lascas de madeira. As pontas dos dedos mostram feridas em carne viva. Observando o chão em volta, percebo algo que não havia visto da primeira vez que observei. A penumbra deste lugar torna ainda mais difícil de notar, mas consigo ver diversos arranhões com manchas avermelhadas na madeira do chão e das paredes. Em vários lugares, há a repetição das palavras "medo" e "mudança" também "escritas" com ranhuras na superfície.

     Não consigo imaginar que signifique algo até começar a analisar mais friamente a situação, pois o vestido da cópia se encontra um tanto rasgado e também vejo diversos fiapos do tecido espalhados pelo quarto. Observo meu guarda-chuva no chão por um tempo e começo a me lembrar do que Marianne havia me solicitado na época. Abandonar meu guarda-chuva tão querido e protetor é apenas… doloroso demais. Talvez uma das únicas pouquíssimas coisas que me afetam. E o pior de tudo é não saber o por quê. Aquele tempo internada me afetou tanto assim…? Eu não posso mais continuar fazendo o que aquele desgraçado planeja. Eu preciso agir.

     Levanto-me, ajeito meu vestido e apanho meu guarda-chuva uma última vez. A réplica estava certa este tempo todo ao procurar as mudanças e a superação deste medo. Espero que eu seja capaz de fazê-lo por ela.

     Retiro-me da velha e escura casa a passos lentos e pensativos caminhando em direção ao lago no qual havia quase me afogado há anos atrás. A trilha é longa, o que me dá um pouco mais de tempo para perceber o quanto este lugar era lindo. Lembro-me vagamente deste vilarejo, mas de certo conseguia ver todas as pessoas das quais gostava. Agora tudo não passa de um ambiente destruído e envelhecido por debaixo deste grande e denso nevoeiro. O pouco que consigo ver do céu é cinza como se o sol se esforçasse para iluminar algo abaixo das nuvens, mas estas são tão impenetráveis que apenas permitem que deixe o dia nesta cor melancólica.

     Depois de algum tempo caminhando pelo vilarejo e pela floresta, finalmente chego no lago. Ele aparenta estar extremamente escuro com águas negras e viscosas. Observo meu guarda-chuva e consigo sentir um aperto no coração. Ele esteve na minha vida há muitos anos e por diversas vezes foi o meu refúgio quando não tinha a quem recorrer. Embora não queira me desfazer dele, é necessário. Já passou do tempo de começar a ouvir os conselhos de Marianne. Como sinto falta do calor de seus abraços em todas as vezes que estive vulnerável. Creio que não tenho mais porquê continuar fugindo deles.

     Estendo meu guarda-chuva azul acima do lago e depois de alguns momentos finalmente consigo soltá-lo. O objeto cai diretamente nas águas obscuras do lago e tem um impacto enorme, espirrando as mesmas para mais longe do que esperava, como se possuísse uma massa extraordinária. Ele afunda lentamente e meu coração se aperta em um misto de agonia e liberdade. Entretanto, percebo uma crescente luz emanando do guarda-chuva que se torna cada vez mais clara e quente à medida que se distancia para o fundo do lago. Ela se expande de tal forma que ilumina o ambiente inteiro fora do lago, fazendo as águas escuras lentamente perderem essa pigmentação fúnebre e se tornarem límpidas e transparentes novamente. O nevoeiro que sobrevoa a água é dissipado pelos inevitáveis raios que se levantam e consigo até mesmo ver a grama retornando à sua coloração verdejante abaixo de meus pés. Um sentimento de alegria percorre pelo meu coração e me faz perceber como tudo isso faz sentido ao pensar que nunca eu e nem ninguém conseguiremos evitar o medo. Ele sempre fará parte de cada um de nós, pois mesmo que o superemos, ele se tornará uma cicatriz que não mais machuca, porém está alí permanentemente com seu espaço em nossa história.

     Às águas do lago, após esclarecerem, começam a descer gradativamente. Aos poucos o lago vai se esvaziando e percebo que uma escada se forma logo abaixo de mim, com degraus da mesma pedra que contorna o lago. Um degrau se forma após o outro e desce até o fim do lago que já se encontra vazio. Decido, então, descê-los rapidamente.

     Ao chegar ao fim, deparo-me com a entrada de um túnel iluminado por várias tochas. Sinto grande estranheza por elas não terem se apagado debaixo da água. Ou o caminho se formou apenas agora que tive coragem de me libertar. Prossigo de forma rápida, porém cautelosa, pela caverna iluminada por longos minutos. Finalmente sinto a sensação de progresso neste mundo bizarro. Sinto-me esperançosa como há anos não me sentia. Meu coração bate acelerado e as palmas das minhas mãos suam. Um nervosismo atinge meu corpo à medida que me aproximo da saída, a qual é novamente um lance de escadas, desta vez ascendentes. Não penso muito até começar a subir os degraus rapidamente até chegar no campo arenoso novamente onde se encontram duas cópias caídas. Uma delas com vendas nos olhos e morta por diversos cortes em seu corpo. Outra, por uma lâmina prateada atravessando seu abdômen.

     Um desânimo agride meus pensamentos ao perceber que voltei para o lugar onde já havia passado. Por certo tempo, pensei estar progredindo mas o ambiente me prova o contrário. Entretanto, algo me mostra que estou pensando de forma precipitada e ainda pode haver uma esperança, pois o espelho de bolso se encontra novamente no pedestal do centro do local. Caminho até ele ignorando os corpos à minha esquerda e direita e apanho o espelho cuidadosamente. Observo meu reflexo no vidro rodeado pelas molduras platinadas e sem me prolongar muito, falo em voz alta meu desejo:

— Leve-me ao meu coração.

Amália e o Mundo dos EspelhosWhere stories live. Discover now