XI - Entre o jogo e a morte

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"Não há mecanismo que funcione sem uma corrente de energia inicial. Entretanto, sinto muito que tenha que ser esta."

     Depois de certo tempo, elevo minhas mãos trêmulas para secar as lágrimas e levanto-me de meus joelhos. Sacudo um pouco meu vestido e apanho novamente meu guarda-chuva e o candelabro. As chamas dançam cada vez mais desengonçadas à medida que as velas se consomem. Respiro fundo e decido continuar explorando esta casa novamente. Com certeza aqui há algo escondido. Algo que eu em breve encontrarei.
     Saio do pequeno quarto apressada por conta do tempo escasso. Volto a perambular pelos corredores forrados de madeira quebradiça e escuridão. É um tanto bizarro de repente vagar por corredores tão diferentes dos que vi no castelo de Marianne. O brilho do candelabro de apagava gradativamente junto da minha determinação para continuar vagando sem luz pelo corredor que parece interminável.
     Depois de alguns instantes, as velas do candelabro são completamente consumidas e me mergulham na escuridão absoluta. Paro por alguns segundos e um arrepio desce e sobe pelo meu corpo como um turbilhão de medo e apreensão que me faz derrubar o candeladro no chão de madeia que faz um ruído oco e fechado com o impacto.
     Elevo minha mão direita extremamente trêmula até a parede e sigo pelo corredor à procura de algum lugar iluminado. Sinto cada vez mais a umidade e a tinta descascada da parede envelhecida enquanto minha mão sua com a agonia de precisar fazer isso para me guiar.
     Finalmente avisto uma porta cujas frestas estão iluminadas. Quer tenha ou não alguém do outro lado, é garantido que terei luz. Ao abrir a porta, deparo-me com o meu quarto. Tudo exatamente da forma que deveria estar, com exceção da penteadeira. O banco da penteadeira fora substituído por uma cadeira de madeiras podres como as do resto da casa e, bloquando o espelho da penteadeira, há pilhas e mais pilhas de livros grossos e empoeirados. Permaneço na porta. Paralisada. Sem entender o porquê do meu quarto estar aqui. E tão arrumado desta forma no âmago de uma casa tão mal cuidada.
     Começo a andar pelo quarto em direção à penteadeira. Passo meus dedos pela madeira da velha cadeira e pelas capas dos livros acima da pilha. Sento-me na cadeia apoiando meus braços nos encostos da mesma enquanto me pergunto o porquê de tudo isto estar aqui. Enquanto estou mergulhada em meus pensamentos, sinto a penteadeira tremer fazendo todos os livros vibrarem junto. Depois de alguns segundos, a pilha gigantesca de livros é derrubada em minha direção e apenas tenho o impulso de fechar os olhos assustada e levantar os braços para me defender. Isto se estes não estivessem presos nos braços da cadeira.
     Ao abrir meus olhos, percebo que estou amarrada na cadeira, mas desta vez é uma cadeira pesada e meus punhos estão presos com enormes travas de aço maciço. Minha cabeça está presa em uma espécie de capacete com vários fios conectados. O ambiente é totalmente escuro até o momento em que uma luz se acende iluminando quase que como um holofote apenas uma mesa quadrada à minha frente. Em cima dela, um tabuleiro de xadrez com as peças devidamente colocadas para o início de uma partida.

- Olá novamente, Amália. - Diz Maudlin surgindo das sombras do lado direito da mesa, mas ainda escondendo o rosto na penumbra.
- Maudlin!? O que está havendo? Tire-me daqui. Por favor!
- Mas para que tanta pressa? Acabamos de chegar. E você não vai simplesmente obter a liberdade de forma gratuita. Muito menos indolor...
- O que quer dizer? Ajude-me, por favor. Estou com medo.
- O medo vai ser a principal chave para se libertar desta cadeira. Você apenas precisa seguir minhas instruções.
- Certo… - Suspiro apreensiva tentando conter o compasso de minha respiração. - O que devo fazer!?
- Você precisará apenas jogar. Jogue, porém, com extrema atenção. Calcule cada movimento. Cada segundo. Caso contrário… - Diz enquanto evidencia a existência de uma grande alavanca de ferro em sua borda da mesa.
- Maudlin…
- Você só precisa começar, Amália… Um único movimento para começarmos. Devo dizer que estou animado para ver isso.

     Direciono minha atenção para o tabuleiro logo antes de fechar os olhos. Respiro ofegante tentando encontrar algum resquício de ritmo em qualquer parte de meu corpo, mas este já está em completa desordem. A trava da minha mão direita se abre com um som alto. Parece que não possuo mais opções.
     Elevo minha mão, com o punho avermelhado e marcado pelas travas, até o tabuleiro. Ela treme acima das peças pretas como um comandate prestes a realizar um ataque suicida. Desço-a, então, até um dos peões do meio e apoio meus dedos na pequena peça. Depois de instantes de relutância, acabo por movê-lo um espaço à frente.
     Olho para Maudlin e este me observa com os cantos dos olhos recheados de um certo desgosto e até decepção.

- Isto é ridículo, Maudlin. E agora? Quer que eu jogue sozinha!?

     Nisso, vejo surgir lentamente da escuridão parte de um braço feminino. A mão é pequena e executa movimentos um tanto robóticos passeando por cima das peças até escolher o mesmo peão que eu havia movido e também movê-lo um espaço à frente. Fico um tanto apreensiva à medida que a mão solta a peça no tabuleiro e se recolhe para a escuridão novamente. Sinto um arrepio descer e subir pela minha espinha e olho para Maudlin por um instante. Ele permanece com sua atenção voltada a mim através do olhar sustentado pelas profundas olheiras.

- Sua vez, Amália.
- Quem… - Engulo seco gagejando sob a pressão dele. - Quem é ela?
- Importa-lhe mais saber a identidade da oponente do que sua própria liberdade?
- Evidente que não. - Maudlin bate na mesa assim que termino de falar.
- Então apenas jogue!

     Não faço mais ideia do que fazer. A única saída parece ser continuar com este jogo sádico. Minha mão se direciona, ainda mais trêmula, para o peão da extremidade direita e o move lentamente por dois espaços. Assim que recolho meu braço, Maudlin me olha com uma feição de raiva e desprezo.

- O que foi isso, garota? O que está fazendo? Perdeu a cabeça?
- O que quer dizer? Apenas estou jogando como me ordenou.
- Eu pensei que iria ao menos jogar da forma correta, mas pelo visto você não consegue simplesmente seguir as regras. Sinto que precisa de incentivo. - Diz enquanto segura uma grande alavanca de ferro que não havia notado antes na mesa.
- O que vai fazer, Maudlin!?
- Não há mecanismo que funcione sem uma corrente de energia inicial. Entretanto, sinto muito que tenha que ser esta.

     Ele desloca a alavanca por alguns centímetros e sou agredida com uma descarga elétrica passando pelo meu corpo todo. Dou um grito desesperado de dor e, mesmo depois de terminar, sinto meus músculos tensos ter espasmos repentinos. Minha respiração acelera como nunca senti antes e minha visão fica turva conseguindo apenas ver o vulto daquela mão novamente movendo uma peça do tabuleiro e voltando novamente para a escuridão.

- Maudlin… - Balbucio à medida que começo a chorar. - Tire-me daqui… Por favor.

     Ele, porém, apenas continua a observar o tabuleiro e fingir que não está me ouvindo. Realmente não tenho escolha. Meus lábios tremem ao tentar conter meu pranto e torno o olhar novamente para o tabuleiro. Decido, agora, mover o peão da  extremidade esquerda por dois espaços. Eu definitivamente não faço ideia do que estou fazendo e claramente Maudlin sabe disso.

- Eu não posso acreditar. Por que você insiste em fazer as escolhas erradas? Parece que precisará de uma dose maior desta vez… - Diz já apanhando a alavanca e puxando-a sem hesitar antes que eu pudesse contradizer.

     Sinto meu corpo inteiro doer e se debater conforme a eletricidade passeia pelos meus músculos e ossos. A dor é insuportável e enfraquece meus membros cada vez mais até que desmaio.

Amália e o Mundo dos EspelhosWhere stories live. Discover now