II - Um doce reencontro

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"A terra que vê ante a você lhe reflete o que seu olhar a lança. Seria ela um espelho? Ou o reflexo era você durante todo o tempo?"

     Meu coração bate mais forte a cada segundo que meus olhos me revelam o que estava escondido por trás daquela porta. Aliás, ainda me viro para ver onde estava a porta que havia acabado de fechar e vejo que aparentemente saí de dentro de uma pedra bem grande. Tudo ainda é muito estranho.

- Eu não acredito... Não pode ser que estou aqui de novo.

     O lugar que vejo diante de mim é uma floresta aparentemente vasta de árvores com folhas de um tom roxo bem claro sendo que, algumas delas, são levadas pela brisa fresca daquele lugar nublado.

- É aqui. De certa forma é aqui. Mas está tudo tão diferente... O que houve com esse lugar?

     Caminho em meio à floresta enquanto ouço o quebrar das folhas já secas caídas no chão e suspirando todo o ar proveniente daquelas árvores magnificas. Era um cheiro bem doce e nostálgico. Quase como se alguém estivesse a derreter um pote de mel inteiro espalhando seu cheiro por toda uma residência.
     Por falar em residência, aos poucos chego no que parece ser uma casa conhecida. Era esta a casa. Saio correndo desviando dos troncos e finalmente sustento meu corpo em frente a porta. Dou um sorriso radiante enquanto levanto minha mão fechada e bato meus dedos levemente na porta. Mal poderia esperar para vê-lo, mas ainda assim tenho certo receio. Algo está errado. Eu não fui jogada aqui por nada. E depois de longos segundos a porta não me foi aberta. O que estaria acontecendo?
     Voltei a bater na porta já não mais tão delicadamente, mas ainda sem resposta. Custo-me a aceitar que não estaria em casa. Aonde mais poderia se ir em um lugar aparentemente abandonado?

- Droga! Você só pode estar de brincadeira, grandalhão. Abra logo essa porta.

     Torno a bater pela terceira vez mais inconformada que nunca, mas dessa vez o impacto abriu levemente a porta.

- O quê? Por que você deixou a porta aberta, amigo? Não tem mais medo dos paspalhos que rondam estas terras?

     Mesmo me sentindo acuada por tal invasão, entreabro levemente a porta e observo o ambiente pela fresta. A pequena casa era iluminada apenas pela chama fraca de um lampião velho em cima da mesa de centro. Meu coração se aperta temendo o que poderia ter acontecido. Fazia tanto tempo. Não consigo aceitar que minha ausência tenha sido tão impactante.
     Resolvo adentrar na casa. Não é algo muito condizente com seu tamanho, pois é uma casa relativamente pequena. Mas está tudo da mesma forma que me lembro. A cama é a única coisa proporcional. E sempre bem arrumada, por sinal. Vejo alguns quadros presos na parede. Todos tortos. Destreza nunca foi seu forte. Dou um leve sorriso de canto de boca e baixo minha cabeça com certa saudade. Caminho até sua cama e me sento ao lado da estante onde o lampião repousava. Começo a mover meus pés como uma criança em um balanço até que meu coração para no momento em que escuto uma voz.

- Eu sei que faz muito tempo, mas acho que você lembra que odeio bagunça na minha cama, não é?

     Viro-me rapidamente e vejo que é ele. Subo na cama e lhe dou um forte abraço.

- Maudlin! Não acredito que é você. É você mesmo? Eu não posso estar sonhando de novo.

     Maudlin olhou em meus olhos logo que o soltei e me disse:

- Que bom que tirou as sapatilhas.

     Maudlin está esquisito. Tem enormes olheiras abaixo de seus olhos azulados e está mais pálido do que o normal. Uma cara um tanto que melancólica para um homem tão alegre.

- O que aconteceu, grandalhão? Por que tudo está diferente? Por que você está diferente?

     Maudlin me segurou por debaixo dos braços e me colocou no chão enquanto dizia:

- Pequena... Você não tem ideia do que aconteceu. É algo maior do que posso dizer apenas com voz e palavras.
- Então me mostre. - Digo enquanto calço minhas sapatilhas pretas.
- Você tem certeza que quer ver? A resposta da pergunta pode lhe custar caro.

     Lembro-me do que eu mesma havia falado pouco antes de abrir a porta do mundo novamente. "Nem tudo está como deixei". Poderia ter diversos significados. Mas eu estava ligada a este mundo de uma forma que mal era capaz de compreender. Apenas senti que deveria fazer o que devia que ser feito.

- Maudlin. Eu voltei para cá por alguma razão. Nego-me a ser chamada de Amália se não for audaciosa a tal ponto de aceitar ver tudo o que tem a me mostrar.

     Maudlin é um sujeito narigudo extremamente magro de mais de dois metros de altura e sempre usa um terno preto com listras verticais brancas em conjunto com uma cartola alta. Ele se abaixa para me olhar nos olhos e me sussurra:

- Venha. Mas vai desejar ter dito "não".

     Ele se levanta e sai pela porta acompanhado por minha pessoa que vinha logo atrás. Maudlin apesar das pernas compridas andava bem lentamente. Obviamente não era para que eu o acompanhasse, visto que quando era criança chegava até a correr para manter o seu passo. Ele anda olhando fixamente pra frente enquanto eu tento quebrar essa resistência lhe perguntando:

- Maudlin... Você está triste?
- A questão é se você está triste, Amália.
- Eu não entendo. Poderia me dizer?
- Logo a frente poderei lhe dizer melhor.

     Depois de certo tempo andando, ele para subitamente e consigo ver um espelho à sua frente.

- Amália. Diga-me o que consegue ver.

     Posiciono-me em frente ao espelho tentando perceber algo de diferente. Pensei que talvez fosse um espelho igual ao que vi no banheiro há pouco tempo atrás, mas vejo apenas eu mesma segurando meu guarda-chuva azul. Viro a minha atenção para Maudlin e digo:

- Não vejo nada...

     Maudlin dá um suspiro profundo e me diz:

- Olhe com atenção, Amália. E se ainda assim não puder ver, toque.

     Uma lembrança daquele acontecimento no banheiro me veio à cabeça. Ajo com certa relutância, mas Maudlin pressiona minhas costas me fazendo chegar mais perto no espelho.

- Por que teria um espelho no meio da floresta? Eu não lembro de ter visto isso quando estive por estas terras.
- O que a memória não traz à tona nunca sequer existiu.

     Alguns segundos de silêncio até que resolvo tocar levemente o espelho. O efeito é o mesmo. Posso ver as ondulações passeando pelo vidro reluzente e, principalmente, uma imagem diferente se formando abaixo delas.

- Maudlin. O que é aquilo? Por que estou vendo aquelas coisas?
- Porque você mesma respondeu que queria ver.
- Mas por que tudo aqui está tão bagunçado?
- A terra que vê ante a você lhe reflete o que seu olhar a lança. Seria ela um espelho? Ou o reflexo era você durante todo o tempo?

     Maudlin está muito estranho. Eu sinto um fio de medo passear por todo meu corpo, mas sinto que já não é tempo de voltar atrás. Então levanto minha mão e a encosto no espelho. À medida que sinto as ondulações em uma mão, aperto meu guarda-chuva com força usando a outra.

- Sentimentos intensos lhe aguardam, pequena Amália. Só espero que eles não lhe desfiem por completo.

Amália e o Mundo dos EspelhosWhere stories live. Discover now