IX - Velas e castelos

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"Nem sempre temos alguém compatível para nos acompanhar e seguir nossas vidas, Amália. Não que precisemos…"

     Observo a chave em minha mão por um instante e logo corro determinada até a porta da frente da casa. Ao abrí-la, ainda um pouco tonta e perdida, consigo avistar o palco ao longe, mas dessa vez consigo também ver a figura da garota que havia perseguido na escola. Ela aparenta ter minha idade e traja um vestido preto até pouco acima do joelho. Meus olhos se espantam e tenho o instinto de correr até o palco.

- Ei! Preciso conversar com você! - Grito enquanto corro.

     Ao me ouvir e perceber minha presença, a menina passa por entre as velhas cortinas vermelhas do palco. Assim que consigo chegar, me esforço para subir em um impulso sem precisar subir pela escada. Ao finalmente estar em cima novamente, abro bruscamente as cortinas à procura daquela menina, mas não a encontro. Só vejo um campo vazio que é logo engolido por uma densa floresta que delimita o vilarejo.

- Droga… Perdi ela de vista de novo. Agora só me resta testar esta chave na gaiola.

     Aproximo-me do meu amiguinho, já com a chave de prata em mãos. É mais pesada do que aparenta, assim como o cadeado igualmente prateado que apanho para destrancar. Insiro a chave na fechadura e a giro. Ouço o mecanismo do cadeado se desenrolar e consigo ver o gancho se abrindo logo após giirar a chave ao máximo. Assim que o cadeado é aberto a chave se despedaça subitamente. Em um susto, deixo os pedaços caírem no chão de madeira do palco. Ao retirar o cadeado da gaiola, seu peso diminui à medida que se dissolve em minúsculas partículas e é levado como areia pelo vento.
     Olho para cima e o tempo escurece cada vez mais. Já consigo ver algumas nuvens negras sobre a minha cabeça. Depois de alguns instantes sem saber onde ir, aquela voz que tanto já gostei de ouvir vem me perturbar novamente pelos alto-falantes:

- Garota… Preciso lhe confessar. Achei que não iria conseguir passar da primeira etapa.
- Eu sou mais forte do que você pensa, Maudlin.
- É mesmo!? - Responde enquanto gargalha de forma debochada e tosse com dificuldade para respirar. - Mas lembre-se que não é você quem controla o jogo aqui.
- Não!? Quem seria então? Você? - Indago com uma das mãos na cintura enquanto apoio a ponta do guarda-chuva no chão.
- Amália… Você não faz ideia do poder que tenho sobre você. Considere-se sortuda por eu ainda querer me divertir antes de finalizar tudo.
- Finalizar? Tudo? O que quer dizer com isso!?
- Acalme-se, garota. Você só vai saber quando eu quiser. Por ora, ainda há dois cadeados. E também duas chaves perdidas pelos arredores.

     O silêncio me mergulha em pensamentos novamente enquanto observo o pequeno pássaro ainda preso. Este também já não canta mais. É uma sensação estranha. Apesar de ter progredido, não sinto a mínima realização e muito menos motivação para continuar. Mas sei que preciso, pois uma vida depende disso.
     Desço do palco com um salto relutante e ando a passos rápidos para mais uma das casas do vilarejo. Esta está em condições bem mais precárias. As madeiras do lado de fora das paredes estão podres e algumas até quebradas. As janelas também ora estão quebradas, ora cobertas de sujeira e pó. A parte da frente da casa possui um jardim já com flores amarronzadas de tão desidratadas ou até mortas e pisoteadas. De todas as casas, esta é a que mais simboliza abandono.
     Entro pela porta da frente que resulta em um corredor escuro. A porta se fecha bruscamente com um som seco assim que ouço o ranger do chão de madeira. Volto inutilmente para tentar abrí-la, mas sem sucesso. Resta apenas encarar o corredor. Ao final dele, posso ver o que parece ser uma entrada iluminada à direita. A luz que provém da mesma é alaranjada e dança insinuosa pela parede ao fundo do corredor.
     Caminho em direção à parede que delimita o corredor enquanto ouço os rangidos inquietantes de  cada passo que dou. Ao me aproximar da entrada, espio de canto o interior da sala e consigo apenas ver um candelabro com sete velas acesas sobre uma mesa de jantar forrada com um lençol branco. Sem conseguir pensar muito, olho para o corredor que percorri e resolvo adentrar a sala, sem muita opção.
     Aproximo-me do candelabro e assisto por um momento as chamas dançarem e iluminarem meu rosto. Ergo minha mão esquerda e apanho o candelabro. As chamas das velas se intensificam e consigo ouvir um choro ao longe. Antes de qualquer coisa, vasculho a sala rapidamente à procura da chave, mas claramente não seria tão fácil.
     Ando pelo corredor no sentido contrário do que havia percorrido e tento seguir o som dos prantos que ouvi há pouco. Depois de alguns passos, sinto que cheguei à porta de onde vem o som. Coloco o guarda-chuva no punho e tento abrí-la, mas está trancada. O candelabro ilumina levemente a madeira envelhecida e a maçaneta arredondada. Ao fracassar em abrir, bato algumas vezes na porta.

- Olá!? Tem alguém aí?
- Não. - Disse uma voz feminina de dentro da sala logo antes de começar a chorar ainda mais.
- Isso é sério? Deixe de besteiras. Abra a porta.
- Vá embora!
- Mas eu só quero ajudar, garota.
- Não há como me ajudar. Nem você e nem ninguém pode fazer isso.
- Se você não abrir, eu vou abrir essa porta à força.
- Não! Vá embora!

     Sem muita paciência, resolvo dar algumas ombradas na porta. A cada batida, a porta fazia barulhos de mecanismos sendo forçados. Depois de algumas tentativas, a porta cede, mas o interior da sala agride meus olhos com um clarão tão forte que me faz trepidar e cair no chão. Levanto-me rapidamente apanhando o candelabro que havia derrubado e me vejo novamente naquele lugar enorme e iluminado que já havia visto mais cedo. É um corredor grande e com vários quartos. Começo a andar, ainda com o candelabro em mãos, pelo corredor até que começo a ouvir um canto daquela mesma voz doce que havia ouvido mais cedo. Permaneço alguns instantes com o ouvido encostado na porta de madeira para ouvir seu canto. Decido me recompor e finalmente bater na porta algumas vezes.

- Entre, por favor.

     Ainda reluto para abrir a porta, mas consigo vencer a hesitação e prossigo abrindo-a por completo. Ao entrar, dou um suspiro aliviado com o conforto que o ambiente me passa. É um quarto consideravelmente grande e todo enfeitado com vasos e estantes bonitas. Mas a parte mais linda do quarto é ver uma mulher sentada em sua penteadeira enquanto cuida de seus longos cabelos loiros e ondulados. Assisto a moça se embelezando enquanto continua a cantar. Ainda que não possa ver seu rosto, sei que é uma mulher linda. Mas não sei o que fazer agora. Preciso dar um jeito de conhecê-la sem ser invasiva.

- Aproxime-se, minha querida. Não está sendo invasiva.

     Engasgo subitamente com aquela frase. Ela leu minha mente? Isso é impossivel. Ainda em choque, resolvo caminhar com passos incertos até me aproximar da moça. Seu vestido é de um azul marinho com branco e lhe cai excelentemente bem. Não canso de me impressionar com essa mulher que mal vi ainda.
     Ela repousa o pente gentilmente em cima da penteadeira e se levanta virando para mim. Ela oferece um sorriso surpreso por dentro do batom vermelho e me fita com seus olhos de um tom azul igual ao de seu vestido.

- Estive te esperando, Amália.
- Esperando-me? Quem é você?
- Sou a baronesa deste castelo. Chamo-me Marianne.
- Baronesa? E onde estaria o barão?
- Nem sempre temos alguém compatível para seguir nossas vidas, Amália. Não que precisemos…
- E como sabe meu nome!?
- Eu sei tudo sobre você, querida. - Responde enquanto se encaminha para a porta do quarto.
- E onde estou?

     A baronesa abre a porta e para por alguns instantes na entrada para romper o silêncio dizendo:

- Estamos em casa, querida.

Amália e o Mundo dos EspelhosWhere stories live. Discover now