XV - A tempestade

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"todos os caminhos lhe direcionavam a este fim. Você realmente não passa de uma trapaceira assustada."

     Acordo novamente em frente à lareira sentindo enorme fraqueza em meus músculos. Eu realmente preciso descansar e não aguento mais este lugar. Essas lembranças e experiências horríveis estão me deixando ainda mais maluca do que já sou por natureza. Eu preciso ir embora desse pesadelo depressa.
     Olho para o chão e avisto as chaves de vidro. Nenhuma parece estar quebrada, embora pareçam tão frágeis. Levanto-me e ouço um relâmpago extremamente alto que me faz derrubar o guarda-chuva no chão. Apanho novamente com o corpo trêmulo e olhar assustado. Preciso correr antes que seja tarde.
     Ao sair da velha casa, já posso sentir o cheiro de chuva no ar. Consigo ver o palco ao longe e noto como o pequeno pássaro está desesperado dentro daquela gaiola. Tento correr o mais rápido que posso para libertá-lo. Ao chega ao palco, subo rapidamente pelas escadas e me ponho frente à frente com a gaiola do pobre animal. Observo os alto-falantes abaixo do céu escuro e suspiro fundo com certo pesar na alma. Escolho uma das chaves para destrancar o cadeado maciço de metal, porém a chave se despedaça assim que começo a girá-la. Decido, então, usar outra, mas o mesmo acontece. Um dos cacos de vidro da segunda chave abrem um corte em minha mão durante a queda. Após um gemido de dor olho para o corte e praguejo mentalmente sem ter muita opção do que fazer. Continuo tentando uma após a outra, mas todas se despedaçam liberando muito pó e cacos de vidros. Cada uma delas corta minhas mãos lentamente. Ainda há tantas chaves no chaveiro, mas todas agora já parecem cristais ensanguentados por conta dos vários cortes que sofri. Todos eles sangram e ardem cada vez mais, mas preciso ser forte e resistir.
     Continuo tentando, e consequentemente as chaves continuam quebrando até restar apenas uma. Observo-a com as mãos trêmulas e banhada com o sangue que escorria das incisões causadas pelo vidro que se quebrava. O chão de madeira envelhecida abaixo de mim já está coberto pelo vidro avermelhado e minhas lágrimas eventualmente também caem sobre ele.

— É agora… Vai dar certo… Tem que dar certo….

     Insiro a chave cuidadosamente na fechadura e a rotaciono leve e lentamente. O vento corrompe minha audição, mas aos poucos consigo ouvir o clicar da tranca do cadeado se soltando pouco a pouco. Um sorriso esperançoso se entende em meu rosto à medida que giro a pequena chave, mas para meu infortúnio ela se quebra de repente cortando minhas mãos quase que como um gesto de punição. O sorriso se esvai e o meu olhar se desespera ao fitar o aro sem chave alguma. As lágrimas escorrem pelo meu rosto, mas não consigo discernir se é devido ao destino inevitável do pobre pássaro ou ao meu fracasso que sempre está presente.
     Sinto uma gota de água cair sobre meu rosto. Olho para o céu e a vejo os relâmpagos passearem pelas nuvens que já começam a derramar a chuva sobre minha cabeça. Em um gesto rápido abro meu guarda-chuva acima de mim e da gaiola enquanto a chuva se intensifica.

— Está feliz? Era isso o que queria? — Digo baixo observando os alto-falantes.
— Não posso dizer que ocorreu da forma que previa. — Diz o maldito em tom fúnebre. — Mas todos os caminhos lhe direcionavam a este fim. Você realmente não passa de uma trapaceira assustada.
— Eu… Eu não sou nada disso, desgraçado…
— Se não fosse, teria obtido sucesso em sua tarefa.

     Aperto a haste do guarda-chuva com ainda mais força e vejo o sangue cobrindo minha mão por completo e pingando no chão.

— Feche o guarda-chuva, Amália. — Soa uma voz gentil em meus ouvidos abafando o som da tempestade.
— O quê!?
— Não tenha medo. Abrace a chuva.
— O que está dizendo? Não posso fazer isso. Ele vai morrer. Tudo o que fiz será em vão.
— Nada será em vão. Tudo ficará bem.
— Como posso ter certeza?
— Confie em mim. Não há o que temer.

     Não há como estar em pior situação. A incerteza acerta meu coração em cheio e o faz palpitar por debaixo do tremor do meu corpo. Fito novamente o colorido pássaro ao lado e percebo que o mesmo já não canta mais. Ele recolhe sua pequena cabeça para junto ao corpo e adormece. Outra lágrima escorre do meu olho e sussuro quase que sem voz:

— Desculpe-me…

     Fecho meus olhos e retraio o guarda-chuva. Sinto a água gelada da chuva cobrir meu corpo. O vento a torna ainda mais fria, mas tanto o vento quanto a própria chuva lavavam meu corpo e meu espírito. Todo aquele sangue e todas as lágrimas esvaiam-se para longe de mim em uma sensação única de liberdade. O medo da chuva não me aflige tanto quanto antes. Olho ao lado e vejo a gaiola vazia. O metal começa a se dissolver no ar como as chaves que havia obtido outrora e se vai como areia carregada pelo vento até o ponto alto do céu. Fecho os olhos e me permito sentir ainda mais a chuva. Isso sim me proporciona uma sensação de liberdade inigualável.

— O que pensa que está fazendo? — Ouço Maudlin indagar. — Você falhou, Amália. Até quando vai deixar este rastro de agonia e sofrimento por onde passa? Você precisa aprender o certo.

     Abro meus olhos e percebo as gotas da chuva ficando avermelhadas à medida que caem em minha pele. Sinto um arrepio e um medo repentino no coração.

— Não se preocupe. Seja forte. Não deixe seu momento terminar agora.

     Fecho os olhos novamente e já não sinto mais o frio da chuva ou do vento. Sinto uma aquele calor interior que costumo sentir quando estou prestes a vê-la. Um suspiro profundo abre um sorriso em meu semblante. Nunca senti essa sensação de leveza tão grande. Abro os olhos e me deparo com Marianne de costas levemente abaixada em frente à lareira apagando as velas que havia acendido anteriormente. Ela se vira para minha direção e sorri com um olhar sincero enquanto anda em minha direção com os braços abertos. Ela me abraça e meu corpo continua paralisado. Tento fazer subirem meus braços para abraçá-la de volta, porém só consigo depois de algumas algumas falhas tentativas.

— Agora você se molhou inteira.
— Não há problema, Amália. — Respondo com uma risada. — Venha. Você precisa descansar.

Amália e o Mundo dos EspelhosOnde as histórias ganham vida. Descobre agora