À Meia-Noite

2.5K 218 23
                                    

Antes de começar o capítulo, ⚠️ atenção ⚠️

Esse livro tem algumas coisas que podem ser consideradas gatilhos (como referências a automutilação). Se você não se sentir à vontade em começar a ler, não prossiga. A sua saúde e bem-estar estão em primeiro lugar. ❤️

-----

**PARTE 1**

Era impossível dormir quando se ouviam as mesmas vozes, repetindo incessantemente todos os dias a mesma história. As mesmas palavras. Uma voz mais jovem, cheia de veneno, e outras, mais velhas, que apenas prosseguiram com o texto cíclico.

Como sua vida. "Um ciclo de merdas, desde que eu nasci", pensou Bel enquanto contemplava feito um autômato três coisas à frente da sua bagunçada mesa. Uma garrafa de vinho - o mais barato e com mais álcool. Odiava beber porque sua mente fugia, e a única coisa de boa que ainda lhe restou era sua mente, mas a bebida a fazia se esquecer de tudo que queria tirar-lhe a sanidade – o que parecia contraditório, mas Bel não conhecia outro caminho.

De resto, nem seus olhos prestavam. Nem seu corpo, repleto de cicatrizes auto infligidas. A única vez que bebeu com o objetivo de ficar em coma alcóolico, quase atingiu um maluco qualquer com uma faca e ainda cantou "I Will Survive" como se fosse a própria Gloria Gaynor.

Mas ganhou alguma coisa boa naquela loucura. E não ficou em coma alcóolico.

A segunda coisa era um pôster de Donna Summer. Comprou numa loja de velharias no prédio, por um preço modesto – e o lugar ainda aceitava cartão de crédito. Odiava sair da sua rua, do espacinho na Carlos Gomes onde tinha seu prédio, a pastelaria de Seu Januário (onde sempre batia ponto para tomar café da manhã – pastel e uma Coca Cola), a livraria do outro lado da rua e o bar do karaokê. O lugar era sujo e ruim, mas pelo menos não a expulsaram quando ela apareceu bêbada segurando aquela faca.

- Donna... Você fica na moldura, baby. Vou te pendurar na mesma parede da TV.

Lembrou-se da única maneira que encontraria para dormir sem pensar naquelas vozes: Donna Summer, a mulher que sonhava ser, mas nunca poderia. Não era bonita, não era sensual, não tinha uma grande voz, nem sua presença ou força natural. A única coisa em que eram parecidas eram o tom de pele e a tentativa de Bel em emular os cabelos da cantora na capa do álbum "Bad Girls". Em Donna Summer, parecia poderoso.

"Eu fiquei a cara do Luiz Caldas...", concluiu a jovem assim que terminara a "mudança drástica", feita com uma tesoura de costura que tinha em casa, e sem o apoio de um cabelereiro.

Enquanto procurava o computador antigo, mas ainda em boa situação, para acessar a plataforma de streaming onde ouvia suas músicas favoritas, lembrou-se de que ainda faltava outra coisa na mesa: o saco de comida pra gato.

"Bastet!"

Foi até a cozinha – aparentemente projetada pelo dono como um bar americano – e pegou a vasilha da gata, que dormia peluda e relativamente acima do peso em cima do sofá antigo, em frente à janela do segundo andar do prédio (que pela altura da construção, na verdade era o quarto). Colocou a comida que Bastet tanto apreciava. Era caro, mas para sua gata, Bel fazia o melhor que podia.

A gata nem parecia se importar com o barulho da vasilha, mas a jovem sabia que logo ao acordar, Bastet seguiria diretamente para o alimento.

Decidiu que ficaria na internet um pouco, ouvindo música e bebendo aquele vinho pavoroso. Pelo menos o apartamento estava bem trancado e Bel ficaria tão bêbada que nem pensaria em sair por aí.

Respirou fundo, enquanto ouvia os primeiros acordes dos sintetizadores e a bateria marcada do pop/dance de "She Works Hard for the Money" e colocava o vinho no copo.

Cavaleiros da NoiteΌπου ζουν οι ιστορίες. Ανακάλυψε τώρα