10. O mar, o navio e o anão

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O embarcador não demorou para localizá-los e foi ele quem ajudou a carregar Grunny até o barco. A embarcação não era muito grande, mas parecia ser um navio bem resistente, com velas altas e tecidos verde nela. Ao descer as escadarias do cais, Flippo reparou que as cargas eram armazenadas em cavernas nas montanhas, abaixo da cidade, sendo transportadas por alavancas presas na encosta.

Era uma estrutura gigante, por quase todo o litoral e armazenavam os produtos onde os anões achavam mais seguro, embaixo da terra.

Grunny e Flippo foram alojados nos convés, com algumas cargas, mas fora da parte dos remadores. O mago apenas se acomodou e deitou continuando o sono, Flippo conferiu seus pertences e não conseguiu adormecer, estava preocupado com o novo amigo e chateado com o que acabara de passar.

Os restos de comida ainda estavam grudados em suas vestes.

Havia mais uma família de humanos no mesmo compartimento, um casal com um bebê e um anão bem velho, de barbas e cabelos brancos já ralos. Além do balanço do mar, que Flippo pareceu não estranhar, o choro do bebê alternava com o tossido do senhor que quase não se levantava.

O garoto tentou se acomodar ao lado de Grunny, que ora roncava e ora acordava falando sobre o que tinha que fazer na torre de magia, voltando a dormir em seguida, mas não conseguiu pregar os olhos.

Tanto a noite quanto o mar estavam calmos.

Flippo ergueu a cabeça quando a sequência de tosse ao seu lado parecia não ter fim, o menino foi até a jarra d'água deixada pelos tripulantes a eles e depositou num copo servindo ao senhor.

- O senhor está bem? - perguntou o menino, se aproximando.

- Ah... muito obrigado... cof cof. - respondeu o velho anão, de vestes simples e tecidos rasgados. - vai passar, vai passar.

- Se tivesse umas ervas, poderia fazer um chá, uma bebida quente ajudaria.

- Não se preocupe menino, quem viveu quatrocentos e quinze anos sabe esperar.

- Tudo isso? Que sorte os anões têm em viverem tanto! - disse Flippo se acomodando ao lado do gentil senhor.

- Nem sempre viver muito é viver bem, garoto. Cada um tem um papel a cumprir, quando o encerramos, voltamos para os confins da terra.

- Sim... para a terra. - disse Flippo desviando o olhar.

- O que foi, você ficou triste com alguma coisa...hunpf?

- Não, nada, apenas estava lembrando de uma situação.

- Qual situação?

- Se o senhor que pode viver tantos anos, tivesse sofrido um acidente e morrido antes de completar a idade que tem hoje, por que o senhor acha que isso teria acontecido?

- Boa pergunta garoto, isso nos leva a uma reflexão, sobre o porquê estarmos aqui. Eu tive muitos amigos, parentes e conhecidos que se foram antes de mim, pessoas mais velhas e outras mais novas, não sei te dizer o porquê, mas... acredito que cada uma delas cumpriu a sua história, sendo ela curta ou longa, foi um capítulo concluído nas páginas da vida e o que uma pessoa escreve, nada apaga. Eu me lembro de todas elas... cada uma com seu jeito, com sua característica, com algo especial, elas se foram, sim, mas não tiraram de mim o que sinto delas, não é mesmo?

Ajoelhado em suas pernas, Flippo sentiu as lágrimas em seus olhos correrem lentamente, como um fio, que quando solto, cai pela superfície.

- Vejo que também tem alguém que está enterrado dentro de você...

- ...sim. - Flippo olhou para o senhor, sem enxugar seus olhos, revelando seu choro.

- É da terra que as sementes nascem e é na terra que os tesouros se formam, garoto. Às vezes, precisamos deixar o que está enterrado lá, para quando olharmos, podermos ver a jóia que está se formando.

O velho anão começou a tossir ainda mais, sem parar, Flippo trouxe mais água e o cobriu com uma manta sua, após alguns minutos o senhor conseguiu repousar, caindo no sono.

- Durma também menino, amanhã será um novo dia. - disse, se despedindo de Flippo.

***

O balançar do navio fez Grunny despertar, seus olhos se abriram vendo as coisas se moverem de um lado para o outro, a dor de cabeça estonteante e o embrulho no estômago fez o garoto sair correndo para cima do barco e ainda conseguir chegar a tempo para devolver ao mar o que estava remexendo em seu estômago.

Flippo, que já estava acordado, do lado de fora, correu ao encontro do amigo, mas hesitou quando percebeu o que estava acontecendo.

Depois de longos minutos e urros incessantes do garoto, Flippo ajudou Grunny a sentar-se, encostado na proa do navio.

- Você está bem?

- Por que tudo está se movendo... tanto. - o mago levantou-se de sobressalto e ameaçou vomitar novamente, mas pareceu não ter mais nada dentro dele. Ele começou a remexer dentro de seu casaco, sacou sua varinha de ametista e lançou um feitiço em si mesmo - Ego Exsultate! - disse.

Uma leve faísca saiu da ponta da varinha e se apagou rapidamente.

- Droga, não consigo me enfeitiçar. Flippo tente sua música, por favor, algo que me ajude a mudar de humor, aquela bebida de ontem ainda está fazendo efeito em meu corpo.

Vendo as olheiras negras e o semblante esverdeado do garoto, Flippo sacou sua flauta das roupas e começou a tocar, uma canção alegre e festiva, batendo os pés no chão enquanto tocava.

Alguns marinheiros ergueram a cabeça acima dos remos ouvindo a festiva canção, alguns minutos depois Grunny foi se erguendo, rebolando os quadris, voltando a coloração normal de sua face. Flippo terminou a canção quando percebeu que o menino estava melhor.

- Obrigado, Flippo, já me sinto renovado.

- De nada. - Flippo pensou por um minuto e perguntou - Grunny seus feitiços podem ajudar os outros?

- Depende, eu sou um mago transmutador, consigo alterar o estado de humor das pessoas, creio eu...

- Venha comigo, então.

Flippo o conduziu até o convés do navio, onde haviam passado a noite, na direção do anão ancião, que se remexia onde estava deitado, já descoberto e tossindo com menos intensidade. O músico o cobriu.

- O senhor está bem? - perguntou sem saber se estava dormindo ou acordado. O velho se aconchegou na coberta e nada respondeu.

- Ele passou muito mal a noite, está com o peito chiando muito, temo por ele - disse a mulher que estava com o bebê no colo, ao fundo dos convés.

- O que acha que pode fazer Grunny?

- Hum, nesse caso não sei se poderei ajudar muito, estou quase sem ingredientes aqui, senão poderia fazer uma poção para sua respiração - o garoto se aproximou encostando a mão na testa do senhor e abrindo seus olhos, o que foi rispidamente, fechados. - ele está febril. Flippo pegue uma caneca com água.

O pedido foi prontamente atendido, Flippo segurou a caneca nas mãos e Grunny tinha sua varinha apontada para ela.

Sana remedium! - disse Grunny apontando a varinha para o copo com água.

Flippo percebeu o efeito, o líquido transparente logo mudou de cor e textura, ficando esverdeado e grosso.

- Faça-o beber. - disse Grunny se afastando.

Flippo ergueu o homem, acomodou seu pescoço e pôs o líquido em sua boca. Automaticamente, o senhor cuspiu toda a bebida para a fora, voltando a tossir.

- Não tem gosto muito agradável. - disse para todos que estavam observando. - Dê mais, isso pode ajudá-lo.

A mulher veio ajudá-los, entregou seu filho a Grunny, que ficou sem jeito ao pegar o pequeno em seus braços, foi para o lado de Flippo e tampou o nariz do senhor, até ele abrir a boca.

- Vamos, ponha agora! - ordenou a Flippo.

Flippo depositou todo o conteúdo da bebida na boca do velho homem que a engoliu a força. O tossido e o engasgar fez o homem ao fundo se levantar, a mulher pegou a criança com Grunny e foi para o lado dele.

A aparência do homem foi mudando, seus olhos se fecharam e ele começou a roncar. Flippo o acomodou e ficaram olhando ele por alguns instantes.

As Aventuras de Flippo e o Trinustempus Where stories live. Discover now