5. A homenagem nas minas

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Quando o pai de Flippo chegou, o menino estava tocando sua flauta sentado numa pedra em cima da encosta montanhosa onde ficava sua casa. O homem resolveu silenciar-se, conferindo a melodia triste e saudosa que entoava do instrumento. Ele foi se aproximando, lentamente, até Flippo concluir a melodia.

- Linda canção, filho.
- Pai! Você estava aí o tempo todo?
- Faz algum tempo.
- Era... para ser surpresa... mas, o que você achou?
Com os olhos cheios de lágrimas o pai estava enternecido com a partitura criada pelo pequeno.

- Linda, como sua mãe era.
Otony abraçou seu filho com enorme carinho.
- Vamos entrar filho, a noite está mais fria hoje. Como foi a caça?
Os dois seguiam abraçados para dentro da cabana.
- Não tive muito sucesso – mentiu o menino – vamos ter que comer as tortas da tia Helga.

- Eu não vejo problema nisso e você?
- Também, nenhum.
Pai e filho fizeram a refeição juntos e logo adormeceram ao crepitar da lenha acesa na fogueira que mantinha aquecido o ambiente de um cômodo, onde moravam.
Como Flippo havia demorado para dormir, calculando o tempo que teria para o dia posterior, acabou acordando com o sol já no céu. Seu pai havia deixado a mesa posta com as guloseimas da anã e chá quente.

Na orla da cabana haviam restos de galhos e flores esparramadas, Otony estava criando uma guirlanda de flores em homenagem a sua amada.
- Bom dia pai.
- Olá filho, viu a comida no fogão?
- Sim. Que bonita você que fez? - disse apontando para as flores que seu pai emaranhava.
- Ainda tenho algumas coisas a acrescentar, mas o que está achando?
- Fantástica! Nunca vi nada parecido.
- No meu povo costumamos criar círculos de flores e jogar ao mar para aqueles que morreram longe de nós...
- É um costume muito bonito pai.
- Sim, vamos fazer uma linda homenagem para a memória de sua mãe hoje.

- Claro. Posso te ajudar?
Flippo se aproximou do pai procurando conhecer um pouco mais sobre os costumes e forma de cultura de seu genitor humano. Nunca havia estado na cidade onde seu pai nasceu e queria saber honrá-lo quando chegasse a hora.
Os dois ficaram até o entardecer arrumando a guirlanda, com tantas flores coloridas sobrepostas aos galhos de pinho. Era um lindo enfeite com mais de um metro de diâmetro.
Otony ficou orgulhoso do feito e feliz por Flippo ter estado com ele.
Ao raiar da tarde, os dois se vestiram com as melhores peles que possuíam e levaram seus objetos em direção a vila dos anões. Jogaram a guirlanda na carroça emprestada e se dirigiram para o vilarejo.
Quando passaram pela vila vários comboios seguiam em romaria passando pela entrada principal em direção a mina soterrada. Várias chamas acesas guiavam o caminho até lá. Praticamente, toda a vila havia deixado suas casas para prestar as homenagens aos familiares soterrados. O caminho não era longo e todos que iam chegando se colocavam em semi círculo em volta da mina fechada pela terra. O avô de Flippo ostentava um casaco grandioso de pele de urso branco e segurava um cajado de ferro cravejado de joias, no centro de todos. A avó, ao lado dele, estava com um casaco negro que a encobria inteira e uma tiara reluzente de prata e diamantes. Havia uma estrutura de madeira onde duas caçambas grandes estavam suspensas, ao fundo deles.

Otony não se lembrava do desgaste que era estar naquele lugar, mesmo indo as minas diariamente, a recordação do local, do desastre, de sua perda o fizera remoer seus mais amargos sentimentos. Todos choravam, lágrimas abundantes e gritos de dor eram ouvidos, junto com as trombetas familiares que soavam sem parar.

Alguns clérigos fizeram soar raios coloridos para os céus que eclodiam como fogos de artifício. Em seguida o silêncio aterrou o local e os corações dos anões e dos dois humanos. Sentiram o clima ainda mais gélido com as primeiras ventanias que antecediam o inverno.
Gerónd tomou a frente com seu cajado em mãos, da onde refletia uma luz branda e clara.

- Anões de Bedaür.
Um clamor de ferro e gritos ressoou em todas as direções.
- Hoje, viemos até essas minas onde está enterrado nosso maior tesouro, homenagear o que a terra nos tomou. Nossos filhos, pais, mães, irmãos que honraram até o último dia de suas vidas o labor anão... - ele se curvara para a frente apoiando-se com as duas mãos em seu cajado. Luci veio acudi-lo, mas ele a repeliu. - A dor de olharmos para as minas que nos sustentam e que pediram as vidas de quem tanto amamos. Não viemos extrair nada – disse olhando para a entrada fechada de terra – viemos entregar nosso tesouro.
O velho anão tirou a maior pedra que estava cravejada em seu cajado, um diamante finamente polido e o arremessou para o buraco remanescente de terra fofa a sua frente.
Sua esposa o seguiu arremessando a tiara em sua cabeça e jogando-a para o chão, seus longos cabelos grisalhos passaram a se projetar com o vento.
Cada família depositou o que possuía de mais valor, material ou emocional. Quando Otony carregou penosamente a guirlanda de flores, os anões ficaram estarrecidos com tamanha beleza do ornamento.
Luci o aguardava e depositou a mão em seu ombro antes dele arremessar o objeto à cova de terra. Flippo permaneceu estático próximo a carroça vendo todos os outros anões depositarem seus pertences.
Depois que todos terminaram de jogar um grande tesouro, Gerónd ergueu seu cajado e as duas caçambas posicionadas foram tombadas encobrindo todo o tesouro com terra.
Até o último grão de terra cair houve um silêncio abafado por todos.
Flippo levou sua flauta à boca, fechou seus olhos e começou a entoar o canto que fez para sua mãe. Todos os olhares e atenções voltaram para a sublime canção que sem palavras expressava o sentimento de saudade e dor de todos.
Aproveitando a emoção do momento os clérigos anões conjuraram fagulhas de luzes brancas que se dispersaram no ambiente sendo direcionadas pelo vento. Os poucos minutos da canção acalentaram o coração de todos, especialmente aqueles que perderam seus familiares mais próximos.
Flippo soltou sua flauta, com os olhos encharcados de lágrimas e curvou-se para baixo, sem conseguir sair de onde estava. Seus avós, tia e pai vieram abraçá-lo com lágrimas nos olhos.
Os anões bradaram seus machados e escudos novamente e ergueram Flippo em seus ombros, levando-o consigo de retorno até a vila, enquanto ele continuava tocando sua flauta e os anões entoando seu hino fúnebre, regrado a bebidas fortes. Quando todas as famílias voltaram para o vilarejo as enormes portas cravadas aos pés da montanha foram fechadas, anunciando o luto oficial do clã Bedaür.
Flippo e Otony estavam na casa de Gerónd, que os saudou com um farto jantar e bebidas. Muito pouco se comeu e muito menos se falou.
- Devolvemos a terra o que dela tiramos. - disse Luci quebrando o silêncio sobre a mesa. - mas será que ela nos devolverá o que nos tirou também?
Gerónd, o único que comia, estapeou a mesa fazendo os talheres saltarem.
- Flippo, que bela canção você compôs, todo o clã Bedaür te saúda como um filho! - continuou a mulher. - você e seu pai são joias raras para nossa família...
Luci deixou a mesa de supetão, enquanto levava a mão ao rosto, adentrando aos corredores da grande casa, seguida por Helga.
Otony acenou para Flippo, fazendo menção em partir.
- Emoções demais... - disse o patriarca anão – um anão é preparado desde cedo a se fortalecer para o garimpo, mas não nos preparamos para despedidas sorrateiras.

Dessa vez a mesa toda saltou quando ele prendeu suas pernas ao se levantar.
- Fique calmo vô, nós estamos aqui com o senhor. A falta que mamãe nos faz ninguém poderá cobrir, mas um dia, eu sinto, que iremos encontrá-la de novo.
- Será meu filho?
- Sim... eu acredito que sim.

As Aventuras de Flippo e o Trinustempus Onde as histórias ganham vida. Descobre agora