VINTE E NOVE

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Sangue não é mais um problema para mim. Ainda consigo lembrar com clareza da época de criança em que vi a primeira gota de sangue. Foi no dia em que presenciei uma galinha sendo sacrificada, foi amedrontador para mim como criança. Após o acontecido, corri para os braços de meu pai e ele tentou me reconfortar, alegando que isso era normal. Lembro que fiquei alguns dias triste, chorando pela vida dela, eu não entendia muito bem o que tinha acontecido e fiquei sem comer por um bom tempo. Até que eu cresci, tomei consciência e descobri que nada na vida é fácil. Nunca foi, nunca vai ser. Existem aqueles que estão no topo, que são os mais fortes, e eles precisam reinar. E para que isso aconteça, tem que haver sacrifícios. Desde animais e até mesmo humanos. O mundo está em constante crise e guerra, pessoas boas de um lado e pessoas ruins de outra. Mas com tudo o que me vem acontecendo, parei para me perguntar: o que de fato é ser bom? Respeitar os mais velhos é ser bom? Não roubar, não matar e fazer caridade aos pobres te faz uma pessoa boa? Ser bom é ter o seu nome limpo em todos os quesitos? Bom, sinto informar que acabo de assassinar duas pessoas. Isso me torna uma pessoa má?

Talvez. Não sou a pessoa certa para responder essa pergunta, não agora que meu psicológico não está nem um pouco estável. Acontece que o que torna uma pessoa boa ou ruim não é o que ela faz, e sim o porquê ela está fazendo isso. Assim como tem pessoas que ajudam os pobres, mas por obrigação, e também temos aqueles que ajudam de coração, porque sentem empatia pelos necessitados. Não deixando de lado aqueles que matam porque são ruins e tem os seus objetivos acima de todos, e aqueles que, como eu, matam porque é a sua única saída. De qualquer forma, nada disso importa para mim, porque o sangue não é mais um problema. Com tudo o que aprendi, ele não me incomoda mais. Na verdade, agora ele tem um novo significado para mim. O sangue agora significa progresso, quanto mais vermelho estiver o tempo, isso significa que estou mais perto de vencer.

Posso vestir um manto vermelho feito somente com sangue daqueles que matei e usar como proteção para mim mesma. Porque é assim que vejo as coisas agora: o sangue alheio é a minha nova proteção.

Estamos na beira do rio, meu sutiã bege é a única coisa que cobre meu corpo. Não ligo se Tadeu vai me observar ou não, somos irmãos e não temos esse tipo de restrição um com o outro. Me pego pensando em Hiago e meu peito se enche de tristeza ao pensar nele, perco as contas de quantas vezes desejei que saíssemos daqui juntos e me entristeço cada vez mais ao pensar no quanto desejei que essa amizade continuasse fora daqui. Mas corto esse pensamento no mesmo segundo que ele começa, e me forço a aceitar que isso ia acontecer uma hora ou outra, ele só fez o trabalho por mim.

Ele me enganou e com isso levou nossa amizade consigo.

Tento pensar que isso teve um lado bom, que não houve despedidas tristes ou sequer tive que presenciar sua morte. Seria bem mais doloroso vê-lo morrer se estivesse ao seu lado. Agora não, se alguém o matar talvez nunca ficarei sabendo, também sei que nunca o verei novamente. Digo a mim mesma que é melhor assim, ele evitou todos esses problemas com um simples ato de traição. Por mais que isso tenha me machucado, sei que me machucaria mais ainda vê-lo morrer sobre os meus braços, porque já não basta todas as mortes que causei e presenciei, ter mais um nome na lista – e de alguém que eu gostava tanto – só me deixaria cada vez mais machucada.

Minha camisa está embolada no chão alguns centímetros de mim, o sangue que colore o tecido com desgosto está seco, escuro e causa um arrepio desconfortante toda vez que o encaro, uma enchente de sentimentos negativos me preenche sempre que o faço. Deixo que ela descanse e pulo na água somente com as roupas de baixo me cobrindo. Assim que entro, é como uma repaginada. Como de costume, a água serve com um purificador para mim, assim que toca minha pele sinto como se limpasse minha consciência e apagasse todos os meus erros, mesmo que por um curto período de tempo. Movo os braços e pernas de baixo da água em sintonia, como uma música. A água para minhas feridas é o mesmo que música para os meus ouvidos.

A CAÇA - OS ESCOLHIDOSWhere stories live. Discover now