VINTE E UM

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      Retiramos nossas roupas molhadas e trocamos por nosso último estoque. Outra camisa branca de tecido fino, uso um casaco preto para me proteger do frio e afastar os mosquitos da minha pele já perturbada. Uma calça parecida com a que usava antes, essa é apenas um pouco mais frouxa, dando mais espaço para minhas pernas respirarem. Levanto o capuz escondendo o rosto quando deixamos nossas antigas roupas para trás. Não há lugar para estender e esperar secar, não temos onde guarda-las, e além disso já está de noite, não há sol para fazer acelerar o procedimento e não podemos mais esperar.

Temos um objetivo esta noite.

Não espero que nada extraordinário aconteça, na verdade, não espero nada de bom depois que fizermos isso. Não sei o que aconteceu nos outros jogos e nem sei se outras pessoas já tentaram algo parecido, mas sinto profundamente que necessito fazer isso agora, não só por mim, mas por todos os outros. Também tenho esperança de que as pessoas da cidade vejam nossos pedidos de socorro e se manifestem, quero que se sintam tocadas com nossas mensagens e que de alguma forma nos ajudem, nem que seja o mínimo possível. Porque não faz sentido o que acontece aqui, não consigo entender como pessoas conseguem ver isso tudo acontecendo e ignorarem. Como se tudo isso fosse um programa de TV e eles simplesmente apertassem o botão de mudar o canal, fingindo que não estão vendo nada, como se fossem robôs. Algumas vezes até acredito que eu acredito que são.

Desejo profundamente alguma reação positiva deles, parece algo impossível, mas eu realmente espero que funcione.

Passamos o resto da noite escondidos, aproveitando o tempo livre para descansar, depois de dias caminhando até finalmente chegarmos na cidade é o mínimo que merecemos. Não ficamos perto da floresta pois assim fica mais fácil para os outros jogadores nos encontrarem, e também não ficamos expostos ao ar livre, decidimos nos esconder em um ponto específico e fechado, evitando contato com qualquer morador ou comerciante. Nos escondemos nos corredores da saída de emergência de um pequeno shopping, está mais para um mercado grande do que para um shopping de verdade, mas é um bom lugar para nos escondermos. Esperamos pacientemente a hora que o mercado vai fechar e então poderemos entrar sem que haja alguma complicação, assim não precisaremos arrombar as portas ou chamar muita atenção.

Escadas e mais escadas enfeitam o nosso esconderijo estreito, é como uma espiral que nos leva até a cobertura do shopping, mas não precisamos ir até lá, ficamos perambulando pelo local, explorando as diversas portas que causam um pequeno eco ao serem abertas. As luzes são fracas, estamos subindo a terceira escada quando uma delas está piscando em pequenos frames, quase queimada. Consigo ouvir pessoas conversando no fundo e coisas sendo arrastadas pelo chão, espero que ninguém nos encontre aqui.

Hiago está sentado em uma das escadas com os cotovelos apoiado na coxa, sua cabeça está em cima das mãos e ele não parece muito satisfeito no momento.

— Tem certeza de que não quer desistir? — Finjo insistir — Ainda dá tempo.

Ele levanta a cabeça e me olha com seus olhos escuros. A luz defeituosa pisca sobre sua cabeça, deixando seus olhos amedrontadores por míseros segundos.

— Claro que não. Já estou aqui, vou fazer isso.

Ele passa a mão pelo cabelo, ajeitando seus fios ondulados e quase cacheados, deixando alguns deles caírem em sua testa, acho que é sua maneira de se esconder. Queria poder fazer o mesmo. Toco meu cabelo cortado, faz alguns dias que não me olho no espelho, além das vezes em que reparei meu reflexo nas águas dos rios ou nos vidros dos carros, às vezes sinto falta do meu cabelo antigo, de vez em quando levo um pequeno susto quando o toco e só então me lembro que ele não está mais aqui – e o motivo de ter ido embora. E por mais que tenha gostado do resultado, não foi algo que fiz por vontade própria, e isso me deixa frustrada.

A CAÇA - OS ESCOLHIDOSWhere stories live. Discover now