DEZ

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       Hiago é um menino legal. Já faz quase uma hora que nos conhecemos e percebi que mesmo com toda essa situação e correndo risco de vida a cada minuto, ele ainda consegue carregar um bom humor consigo, sabendo tirar sarro das coisas ruins de sua vida. Queria ter essa facilidade, o máximo que consigo fazer é ficar quieta na minha e reclamar que perdi o meu pai cedo demais. Ainda não perguntei sobre sua família e não acho que deveria, está muito cedo e não quero piorar o clima que já não é tão bom entre a gente. Além do mais, sei o quão sensível e desconfortável esse assunto pode ser para qualquer um de nós, por isso prefiro não falar sobre isso agora. Mesmo sabendo da possibilidade de ele ser uma ameaça para mim, é bom ter alguém para conversar. Em um momento como esse, o contato com outro ser humano é necessário para que eu não enlouqueça. Pelo menos é melhor do que ficar sozinha com minha mente, só eu sei o quanto ela é uma péssima companhia.

Comemos calado nessa lanchonete escura, mas confortável. O espaço é pequeno, mas muito bem aconchegante, chego até a me sentir em casa novamente. Se fechar os olhos, consigo imaginar nossa mãe levando meu irmão e eu para almoçar fora, algo que só acontecia uma vez a cada dois ou três meses, mas era uma das minhas atividades extras favoritas. Nós passeávamos pelo shopping e visitávamos todas as lojas, uma por uma, até que tivéssemos olhado tudo e não houvesse nada novo para os nossos olhos apreciar. Saíamos de mãos vazias, sem comprar nada, mas o passeio era o suficiente para nos deixar alegre. Durante o almoço, Tadeu, mamãe e eu comíamos observando as lojas ao nosso redor e rindo de qualquer coisa, pois pelo fato de tudo ser tão novo para nós, qualquer coisa era motivo para um sorriso.

Aqui as coisas são bem diferentes. De vez em quando Hiago faz algumas piadas que seriam engraçadas em uma roda de amigos ou em qualquer outro lugar normal lá fora, mas não aqui, não nessas circunstâncias. Não quando estamos correndo risco de vida e temos a consciência de que podemos ser ameaças um para o outro. Eu finjo um sorriso fechado enquanto como calada, não tenho muito o que dizer e sim o que perguntar, mas prefiro não falar nada por enquanto. Mal conheço o garoto, não quero enche-lo de perguntas. Prefiro ir aos poucos, começando pelas coisas mais básicas.

É tão bom sentir o gosto de comida gordurosa depois de passar o dia sem comer nada. Nós pegamos um pouco de tudo; massas, salgados, biscoitos, batatas e refrigerantes. Eu poderia me sentir no paraíso se a possibilidade de morrer não aumentasse a cada segundo que passa. Isso domina os meus pensamentos. Qualquer possibilidade de felicidade é rapidamente apagada por essa possibilidade. Imagino que meu pai sentiu o mesmo quando passou por aqui, cada segundo era uma angustia incontrolável. E eu sei o quanto é difícil não ter controle. Observo o menino divertido enquanto come. Mesmo sendo magro, suas bochechas são cheinhas, o que o deixa fofo. Ele aparenta ser mais velho para a sua idade, mas ao mesmo tempo parece muito jovem devido ao seu rosto. O seu olhar é o que o torna diferente, seus cílios são grandes e escuros, assim como seus olhos, cabelo e a sobrancelha. Todos os seus fios parecem ser um tom além do preto, é algo muito bonito. Sem perceber, me pego imaginando o que ele estava fazendo um dia antes de vir para cá, quais foram suas últimas palavras lá fora e o que ele se arrepende de não ter feito. É então que decido dar início às perguntas.

— Como você veio parar aqui?

Ele para de mastigar seu lanche por um breve segundo antes de falar, um pouco surpreendido pela pergunta, talvez, mas não hesita em responder.

— Bom. — O menino começa, como se tivesse uma grande história para contar. — Eu sou filho único, nasci em uma família pobre e eu já não aguentava mais isso. Sabe aquela sensação de que todos em sua volta são melhores do que você pelas coisas que eles possuem? Era que eu sentia. Nunca fui um bom aluno pois não me dedicava aos estudos, esse foi um dos meus maiores arrependimentos, e além disso, eu não queria fazer parte do exército, não é para mim. Na verdade, eu sempre tive medo, e como não arranjei um emprego esse era o meu destino. Mas eu não queria aceita-lo. Eu estava tão desesperado em busca de alguma ocupação para me livrar do recrutamento que mesmo sem estudo fui a uma agência tentar a sorte, até que lá eu encontrei um homem muito simpático me oferecendo oportunidades quase inacreditáveis. Eu acreditei nele, suas palavras pareciam sinceras para mim, e por acreditar nelas, agora estou aqui.

A CAÇA - OS ESCOLHIDOSWhere stories live. Discover now