CINCO

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     Depois desse inesperado encontro, Paulo e eu saímos cedo da festa. Eu não estava com cabeça para conversar com mais ninguém, e a multidão somada com a música alta não ajudava em nada. Assim que chego em casa, mamãe já está dormindo, o que é um alivio. Não queria ter que explicar o motivo de ter vindo mais cedo, sem dúvida alguma ela só ficaria mais triste e aumentaria sua teoria de ter estado certa sobre meu pai. E eu, infelizmente errada. É muito difícil aceitar que o seu próprio pai, que te criou com o maior cuidado e te ensinou a ser bondosa, quebrou todas as suas regras e foi o oposto do que ele te criou para ser. Simplesmente não fazia sentido nessa minha enorme cabeça.

O mais estranho para mim foi como esse garoto me achou, ou melhor, como ele sabia que exatamente hoje eu teria uma festa com alunos da minha escola e entrou sem estar na lista de convidados? Alguém deve ter ajudado a infiltra-lo dentro do local para que ele me desse o recado. Ainda não sabia ao certo o porquê desse homem ter me dado ajuda. Tudo bem que de acordo com suas palavras, meu pai e ele eram amigos, mas isso não justificava o fato dele me ajudar financeiramente. Para fazer uma coisa desse tipo eles devem ter sido amigos muito próximos, o que só me indignava por não ter tido conhecimento dessa tal amizade.

São cerca de dez horas e meia da noite quando cruzo a porta da sala sem fazer barulho. Os guardas noturnos me encaram estranho quando passamos pelo carro, mas ainda faltam meia hora para o toque de recolher acabar. Tiro os sapatos e me direciono até o meu quarto na ponta dos pés, esperando que ninguém acorde. Eu costumava gostar da noite, principalmente da madrugada. Após diversas noites em claro, o frio e o silencio da noite passaram a ser um dos meus melhores amigos. Meu querido irmão e eu costumávamos fingir que estávamos dormindo até que nossa mãe caísse no sono. Depois disso, Tadeu vinha correndo para o meu quarto por causa da vista devido a grande janela que o seu quarto não tem. Então ficávamos observando e contando a estrelas até pegarmos no sono. Ele nunca aguentava mais do que eu, sempre era o primeiro a dormir.

Entro na cozinha e vou direto à cesta de comidas em cima da mesa. Arranco um pedaço de pão, depois fatio um pedaço grosso de queijo para acompanhar. Já com a consciência de que esse seria o meu café da manhã, me alimento sem me importar. Sei que no outro dia não vou sentir falta. Estou com muita fome pois não comi nada na festa, e para mim fica quase impossível raciocinar com a barriga roncando. Como em pé apoiada no balcão, impávida, ainda pensando nos acontecimentos inesperados que essa noite me proporcionou.

Após comer e beber um copo de água, subo as escadas deslizando os dedos pelo corrimão, como fazia quando criança ao descer e subir dois degraus de uma só vez. A emoção não é a mesma de antes, na verdade eu não sinto a presença de emoção nenhuma. Apenas uma grande saudade coisas que já aconteceram.

Quando entro em meu quarto me deparo com meu irmão deitado, dormindo em minha cama. Seu peito sobe e desce com a sua respiração calma e tranquila. Percebo que ele está descoberto e seus ombros e o resto do seu corpo estão tremendo de frio. Me sinto nostálgica ao sentir o vento gelado da noite tocar a minha pele e ver a janela do quarto aberta. Tadeu observou as estrelas assim como fazíamos quando éramos crianças. Pego o cobertor e o cubro até a região do peito, apreciando meu irmão dormir como um anjo.

Saio sem fazer barulho com a intenção de dormir em seu quarto, até que ele fala comigo.

— Você costumava me dar um beijo na testa antigamente. As coisas entre nós mudaram?

Quando olho para trás ele está sorrindo com os olhos ainda fechados. Sua boca se curva em um sorriso torto que é tão provocador quanto o brilho de seus olhos jovens e encantadores, que logo são perceptíveis quando ele os abre. Me aproximo de meu irmão e me sento na cama com ele. Vendo-o deitado ali em minha cama faz com que eu me sinta tão acolhida e amada. Saber que mesmo depois da morte de meu pai, que era uma das pessoas mais importantes da minha vida, ainda tenho outras pessoas que me amam e se importam comigo. Um irmão insubstituível, uma mãe batalhadora que mesmo depois da morte do marido cuidou de dois filhos sozinha, e um amigo incrível que posso contar sempre que precisar. É pensar nessas coisas que me faz me sentir completa, que mesmo tendo perdido uma parte minha, eu ainda consigo me encontrar nessas pessoas que estão bem ao meu lado.

A CAÇA - OS ESCOLHIDOSWhere stories live. Discover now