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Aviso: o capítulo a seguir narra ações, posturas e pensamentos afetados por transtornos psicológicos. Nenhum destes deve ser romantizado ou simplificado e nem usado como justificativa para toxicidade de certos comportamentos, embora seja necessário lembrar que isso, bem como a recusa por ajuda, tem impacto direto sobre o comportamento do personagem.

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07 de setembro de 2013

Brighton, Inglaterra – Reino Unido

— Você quer conversar sobre isso?

Charlie apoiou a lateral do corpo na porta e cruzou as mãos frente ao corpo. Com os lábios tensos, observou Jack empurrar, com o pé descalço, um punhado de folhas rasgadas, revelando a mancha verde sobre o piso. Ela supunha que aquele tom especifico surgiu de quando ele decidiu misturar amarelo e azul para chegar na cor adequada porque a tinta verde pronta não era a certa e ele não queria estragar a pintura. Fazia poucos meses que Charlie despertara no meio da madrugada e assistira uma versão insone e energizada de Jack decidir se um campo de tulipas seria bucólico demais. Na última madrugada, pouco depois que ela ajudou Jack a se reintegrar à realidade, ainda que parcialmente, e se desprender do pesadelo residual que ainda parecia estar sendo projetado dentro de sua mente, Charlie escutou um som muito diferente vindo do ateliê. Não tinha relação com um Jack produtivo, tampouco com o Jack animado. Parecia-se mais com uma expressão de fúria.

Os restos do episódio eram os destroços que antes compunham quadros em produção. Quando Charlie desceu, no meio da madrugada, chegou a tempo de assistir um pedaço e de ver uma versão transtornada de Jack se livrando de parte das pinturas que ele próprio criara. Charlie não entendeu. Ela não conseguiu compreender a razão daquilo e nem qual a relação do sonho. Também não sentiu coragem de interferir. Jack não parecia só irritado. Havia alguma magoa sendo descarregada nos movimentos agressivos e brutos dele e Charlie não achou que interromper seria a ação mais correta. Ela apenas permitiu que ele descarregasse. Os dois acumulavam muito ao longo daquelas semanas, cada um ao seu modo. Seria bom se houve um caminho para que pudessem lidar com o peso e a pressão.

É claro que, enquanto assistia, escutava-o arfar pelo esforço, sentia a preocupação crescer. Ela nunca sabia se o pesadelo de uma noite era diferente do anterior porque Jack não lhe dava detalhes. Algo em Charlie ficava grato por essa desinformação, algo sentia que a ausência daqueles dados tinha impacto direto na análise do caso. Por lógica, considerando que a destruição dos quadros viera após o pesadelo, deveria haver alguma conexão. Charlie só poderia encontra-la se fosse dito por Jack de forma clara ou se o conteúdo do sonho fosse exposto. Ela receava não acessar nenhuma das informações. Temia ser deixada a esmo para uma análise de alta complexidade. Não era necessário que fosse uma resposta com estrutura muito complexa, apenas que lhe esclarecesse os fatos. Ela precisava saber o que se passava porque tinha de tomar decisões e fazê-lo no escuro poderia ser um jogo suicida.

— É só lixo. — Jack respondeu.

Charlie percebeu que ele ainda estava irritado. Pelo que ela entendera, após destruir os quadros, Jack se sentara no jardim. Ele não voltou para cama e, como de costume, Charlie perguntava a si mesmo se ele voltaria quando a noite seguinte chegasse. Às vezes, tinha a impressão de que Jack não queria fazê-lo porque temia o sono. Os pesadelos eram um padrão na rotina naquele ponto. Quais as chances de dormir e não ter de enfrenta-los? Sem um tratamento ou um milagre, nulas.

— Não é. É o seu trabalho. — Charlie afirmou com o máximo de calma possível. Passou a língua sobre os lábios, pesando as palavras em busca daquelas que formaria a melhor frase. — Você sabe que isso não é verdade.

O silêncio das estrelas [CONCLUÍDA]Onde histórias criam vida. Descubra agora