Eduarda
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O sol lá do alto avisava que o novo havia chegado. O sono ainda me dominava. Melissa e eu mal havíamos dormido na noite passada. Sua febre não havia estabilizado e suas dores de cabeça constantes a deixaram acordada por toda a noite. Me corta o coração ter que ir trabalhar e ter que deixa-la assim: tão veraneável e sozinha. Fiquei o máximo que pude lhe fazendo companhia. Preparei um café da manhã que ela quase não tocou graças a sua crise de garganta. Chegou a vomitar por duas vezes, não sei se pelos enjoos da gravidez ou se era mais um sintoma da gripe. Olhei o relógio e céus, eu já estava há meia hora atrasada. Minha consciência pesava em ter que deixar Melissa assim, sozinha. Pensei em chamar alguém que pudesse ficar com ela, mas quem? Guilherme a essa altura já estava a caminho do jornal. Rafael é um louco psicopata a quem eu jamais confiaria. Lívia jamais aceitaria cuidar de uma "quase rival". Céus, o que faço? Se eu faltar o serviço, Laura vai arrancar meu pescoço fora. Aquela jararaca está esperando apenas um deslize para me ferrar de vez.
— Eduarda, já está passando do seu horário de trabalho. É melhor você ir. — disse Mel entre um gemido de dor e outro.
— Não posso ir. Não vou te deixar sozinha ardendo em febre assim. — falei pondo a mão sobre sua testa e me certificando outra vez de sua temperatura.
— Eu sei me cuidar sozinha Duh, sempre me cuidei, não me deixe tão mal acostumada. Agora me ouça e vá. — ela ordenou.
— Promete que vai se cuidar bem na minha ausência? Deixei bastante suco repleto de vitamina C na geladeira e varias aspirinas no criado-mudo. Meu celular vai ficar 24 horas ligado, então por favor, não deixe de me ligar. — beijei sua testa despedindo-me. — agora preciso ir, já estou quase há uma hora atrasada. — me dei conta ao olhar no relógio outra vez.
Redação do Jornal, segunda-feira, 8:30 PM.
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O trânsito consegue me ferrar ainda mais quando creio que meu dia já está ruim o bastante. Melhor eu correr para a minha sala antes que alguém dê por falta da minha presença. Passei na recepção como um furação. Por sorte os corredores estavam vazios. No normal, as segundas-feiras eram sempre de muitos trabalhos, certamente meus colegas estavam ocupados demais para notarem por minha falta, por sorte, era isso. Respirei fundo e quase aliviada adentrei minha sala, eu estava feliz que talvez ninguém tivesse se dado conta desse deslise, digo, atrasado... Ninguém exceto ela.. A cobra, vulgo Laura.
— Outra vez sentada na minha cadeira? — interroguei fitando-a com enorme pavor, enquanto ela sentia-se a dona do espaço que era meu.
— Chega atrasada e ainda age como se tivesse alguma moral? Essa sala e essa cadeira fazem parte do jornal... e o jornal não é propriedade sua. Você é mesmo surpreendente. Isso para não usar a palavra ilaria. — ela girou na cadeira, levantou-se me encarando e caminhando em volta de mim. — você sabe que está atrasada há uma hora e meia né? O que tem a dizer a respeito desse atraso?
— Eu estava cuidando da minha colega de apartamento. Ela está enferma. — respirei fundo para não voar no pescoço dela e apenas me limitei a responde-la.
— Não sabia que você era enfermeira. — sorriu com deboche.
— E não sou, eu só costumo ter um coração... — alfinetei.
— Isso aqui é uma redação de jornal, não um hospital. Você não é paga para cuidar de pacientes, é paga para fazer as noticias circularem. — esbravejou. — Eu te alertei que com outro deslize eu não pensaria duas vezes em te demitir, e bom, não costumo voltar atras em minhas palavras. Eu te alertei e você fez sua escolha. — sorriu vitoriosa e isso me dava nojo. — Não posso negar que você sempre foi uma das melhores do time de jornalista desta redação, mas como eu disse, você "foi" e eu preciso de alguém que continue sendo. Eu não sou a Antonietta, sua ex redatora. As coisas mudaram por aqui e agora tudo caminha conforme meu ritmo.
— Você não pode me demitir por um atraso Laura. — relutei chorando. —Antonietta enxergou em mim uma jovem e promissora jornalista, e eu sei que sou. Não me mande embora por um motivo tão pequeno.
— Não foi um atraso. Você sabe que não. Foram vários. Suas matérias agora são vazias de conteúdos e sua coluna está mais amadora que um estagiário em processo de aprendizado conseguiria fazer. Você era uma jornalista incrível, mas optou por perder a paixão pelo que fazia. No inicio eu relevei e tentei acreditar que era por causa da sua perda em relação a sua falecida namorada. No entanto, sua maré ruim não passa e com os dias você só piora.
— Laura não faz isso por favor, a garota que mora comigo está gravida. Ela não trabalha e eu serei a responsável por cuidar financeiramente dela e da criança. Se você tem um coração ai dentro, me prova isso agora e não me demite. Eu juro que vou melhorar. — entre soluços e lagrimas implorei.
— Como eu disse, aqui é um jornal, não um hospital com ala para questões psicológicas que trata de problemas pessoais. Passe no RH, eles lhe vão conduzir melhor sobre o processo de demissão.
— É pela Lívia né? Isso tudo que está fazendo?
— Hã? O que tem a Lívia?
— Está agindo assim por pura pirraça... Por saber que ela quer a mim e não a ti.
— Eduarda, não seja tão infantil. Não misturo assuntos pessoais com profissionais. Se você fosse capaz de separar o pessoal do profissional também, certamente seria uma profissional melhor.
— Quem é você para me julgar como profissional? Eu vou passar sim no RH, mas antes quero te deixar uma pequena lembrancinha. Guarda com carinho isso aqui? — ao finalizar essas palavras soquei com toda a força do meu punho seu rosto. Sua boca sangrou e só depois me dei conta do que o meu momento de ódio me levou a fazer. Esperei que ela revidasse, mas do contrario, ela apenas me encarou e disse:
— Sabia que isso configuraria uma justa causa e mais um processo na justiça? Só não vou fazer isso porque ao contrario do que pensa, eu tenho um coração e sei que tem uma criança completamente dependente de ti vindo ai. Do contrario eu arrancaria cada centavo do que vai ganhar enfiando um processo no seu... Bem, você pode imaginar o final da frase. — falou batendo forte a porta e saindo da sala que antes eu podia chamar de minha, mas que agora, me parecia só mais uma lembrança do passado. Eu me via desconsolada e sem saber como agir. Respirei fundo, enxuguei as lagrimas, peguei meus pertences e sai dali.
E agora? Escrever é tudo que sei fazer. Não me imagino fazendo outra coisa. O jornal sempre foi a minha paixão e mais ainda, a minha vida. Lágrimas de desapontamento circulavam por meu rosto. Segui até a sala de Guilherme para me despedir do meu grande amigo e fiel companheiro de trabalho, mas sua sala estava vazia e intacta. Me surpreendi, ele quase nunca faltava trabalho. O procurei pelos corredores e um colega de trabalho disse que ele ainda não havia chegado. — Espero que essa cobra também não ouse demiti-lo. — pensei caminhando até o estacionamento, pegando meu carro e indo para longe dali.
No caminho, meu celular toca por vezes, evito atender por conta do trânsito, mas as chamadas se tornavam cada vez mais frequentes e em menor intervalo de tempo. Com muita preocupação, atendi sem nem ao menos olhar o visor, podia ser a Melissa precisando de mim.
— Alô? — falei ao atender a chamada.
— Duda, sou eu, Rafael. Sei que você me odeia, mas por favor, não desliga, é urgente. É sobre o Guilherme. Avisa no trabalho que ele não vai poder ir hoje. — o tom de Rafael estava tenso e me passava uma grande insegurança.
— Eu não estou no jornal, mas por qual motivo ele não pode vir hoje? — meu coração passou a bater mais descompassado.
— Ele está no hospital em estado bastante grave. — quando o ouvir dizer tais palavras, quase bati o carro com o impacto da noticia.
— Hã? Como assim em estado bastante grave? O que houve com o Guilherme? Fala Rafael? Diz o que aconteceu com o meu amigo? — eu o metralhava com as perguntas, sem dar espaços para as respostas.
— Ontem por volta das 4 horas da manhã ele saiu de uma social com alguns amigos e um grupo de homofóbicos os espancaram. Era um grupo grande e Gui e seus amigos não tiveram como se defender.
— Os agressores foram punidos? — indaguei com profunda revolta.
— Não. Conseguiram fugir. — ele respirou pesadamente como se tivesse segurando o choro. — O quadro de Guilherme é bastante grave. Ele foi atingido a chutes na cabeça e permanece inconsciente. Eu estou no hospital com ele, se quiser dar uma passadinha aqui, te envio o endereço por mensagem. Ficarei grato se puder informar no jornal. — ele finalizou seus dizeres e desligou me deixando com o peso da noticia que caiu em minha vida como se fosse uma bomba.
Meu mundo estava completamente fora do lugar. Primeiro Melissa doente, depois minha demissão e agora meu melhor amigo nesta situação? Esse definitivamente não era o meu dia. É revoltante o fato de que temos que viver na sombra do medo. Por qual razão empurram a sensação de estarmos cometendo um crime por simplesmente amar? Ninguém deveria ser diminuído por amar alguém do mesmo sexo. Não é uma escolha ser hétero, assim como ser gay também não. Mas por que as pessoas ainda levam essa ideia retrógrada adiante de pensar que o desvio da heterossexualidade é uma opção? Não podemos sair de mãos dadas com quem amamos por ser visto como "desrespeito". Não podemos beijar em público para não atingir a "moral" dos demais. Somos atacados e oprimido todos os dias, e mais ainda, somos espancados e em casos extremos: MORTOS. Meu amigo está sofrendo por simplesmente espalhar o amor... e o mais revoltante de tudo isso é a impunidade.