Por mais que as pálpebras pesassem, não conseguia fechar os olhos. Algo me mantinha acordado. Não sentia o corpo da cintura para baixo. Naquele instante, só tremia os lábios. Ali, tudo o que eu ouvia era a sonoridade das flautas que adentravam pelos meus poros.
Quando acreditei ser o fim de tudo, vi uma energia dourada me preencher por inteiro, como se me abraçasse. Eu estava caído, mas, ao mesmo tempo, encontrava-me fora do corpo.
Por um breve momento, observei ao redor e notei o tempo congelar. Além de mim, nada se movia.
De repente, ouvi um chamado. Olhei para todas as direções, mas não encontrei quem estava a minha procura. No início, pareceu apenas uma repetição ilusória, assim como havia acontecido na Quatro Galhos. Porém, a insistência da voz me fez descartar essa possibilidade.
— Crispim Guacci.... Crispim Guacci...
— Iris...? — disse eu.
Pelo tom delicado, pensei em Iris. O rosto dela era o único a se formar na minha mente. Por outro lado, se eu estava morto, era difícil que fosse ela de novo — a não ser que tivesse batido as botas.
— Não, Crispim. Não me chamo Iris.
Acompanhando a voz, segui na direção da luz.
— Então, quem é você? — perguntei, tapando parcialmente os olhos. A luminosidade era intensa.
— Sou alguém que olha por ti, alguém que te concedeu uma missão. E que, agora, vai te mostrar o que precisa ser visto. Sou Alssami, conhecida também como Aurora, Eos, Ushas, Araci, entre outros nomes. Sou a Deusa da manhã. Sou a mãe Dartion.
— Por que não consigo vê-la? — perguntei, com os olhos irritados e semiabertos.
— Porque precisas acreditar que estou aqui. Precisa ter fé!
Através dessa informação, juntei as mãos e voltei a pronunciar a mesma frase de antes: eu nunca estou sozinho, sempre há luzes no caminho.
Quando isso aconteceu, os raios de luz ganharam forma.
— Sou o começo de tudo! — enfatizou, mostrando o que acredito ser a sua verdadeira face.
Alssami é um ser esplendido. Quando a vi, ela estava com uma coroa dourada sobre a cabeça, preenchida por louros. Usava um vestido branco-azulado, tão longo quanto seus cabelos claros.
— Então é verdade... — tentei completar a frase, mas não escondi a cara de espanto.
Arrependido, abaixei a cabeça e dobrei os joelhos diante dela. Pois, antes, havia me recusado a isso.
— Sim, sou tão real quanto você — disse de modo sereno. — Vim porque preciso mostrar o que sua visão não alcança.
Ela segurou minhas mãos, estimulando-me a levantar.
— Preciso que feche os olhos e mantenha sua fé intacta — orientou.
Apesar da timidez, fiz o que Alssami pediu. Todavia, permaneci de cabeça baixa.
Ela acariciou meus cabelos. E assim que permitiu, eu abri os olhos.
Agora eu estava dentro de um castelo, onde o clima gélido causava desconforto.
— Por que estamos aqui? — questionei admirado.
Dando um passo à frente, tentei tocar na parede, mas minha mão a atravessou.
— Este é o local onde deveria ter crescido. Esta é sua verdadeira casa.
O Castelo Real Dartion, deduzi.
Com exceção do frio, tudo estava indo bem, até o presente momento em que ouvi gritos:
— Eu não quero saber! Mandei que dessem jeito naquele ninho de ratos, mas vocês não passam de incompetentes. Ah, é bom que saibam rezar, estão me ouvindo? É bom que saibam... Estou cansado de tantas desculpas esfarrapadas.
A arrogância daquele ser era tão grande que fiquei sentido pelos dois subordinados que o acompanhavam.
Lembro que virei e andei desconfiado para a frente. Porém, assim que o vi sentar-se no trono, deduzi que se tratava de Elmer Farmug. Aquele que destruiu minha vida antes mesmo de ela começar.
Nele, quis descarregar toda a fúria acumulada. Contudo, mesmo com o rancor explodindo no peito, era incapaz de tocá-lo, pelo menos na forma em que eu estava.
— Paciência! — advertiu Alssami. Daquela vez, Ela tocou meu rosto, encostando minha cabeça contra seu ombro.
Olhava para Farmug, mas não entendia de onde vinha tanta maldade. Afinal, agora ele ria de modo pacífico, enquanto acariciava um filhote de furão albino, denominado necrose. Seu longo cabelo azulado não era tão atraente quanto a crueldade ocultada por trás dos olhos castanhos.
Talvez sua maior perversidade fosse ter uma aparência amigável.
— Leon! Leon! Cadê aquele incompetente? — Farmug voltou a gritar.
Dos fundos, veio correndo um baixinho careca.
— Escolha um deles para morrer — apontou Farmug, mudando a feição.
Enquanto ria, colocou o animal sobre o ombro.
— Não pode castigá-lo? Sei lá... atira um raio nele — disse a Ela.
— Não posso, já castiguei antes. E não pretendo repetir. Meu objetivo é iluminar o caminho dos que protejo. Farmug não acredita em mim, mas sim na minha sombra. Por esse motivo, é impossível guiá-lo. Ele serve ao maior inimigo que um coração puro pode conhecer: a ganância.
— Sombra?
— Sim. Vou contar-lhe algo que ninguém comentou ainda.
Alssami soprou para o alto, e isso gerou imagens, formando um pequeno filme.
Ali, vi a criação do dia e da noite, do sorriso e da lágrima, da felicidade e da dor. Enfim, vi o nascimento do equilíbrio.
Quando Alssami nos criou, sua sombra desvinculou-se dela. A partir disso, surgiu a teoria do bem e do mal. Hoje se sabe que na ausência de um, o outro deixa de existir.
A tempestade que durou semanas não foi obra da Deusa em questão. Mas sim de sua sombra, Rorrara. Numa tentativa frustrada de unificação, Rorrara se aproximou no intuito de destruir todas as coisas boas que Alssami havia criado. Porém, quando a Deusa suspeitou das intenções, condenou sua parte maligna a viver num lugar abaixo de tudo aquilo considerável bom.
Como vingança, Rorrara também criou descendentes, conhecidos como Ridis. Farmug é um deles. E, sendo direto, é o filho preferido.
Com o fim da visualização, notei que um dos servos de Farmug estava amarrado dos pés à cabeça numa coluna, a uns vinte passos de mim. E que Leon encontrava-se mais à frente. Leon estava de olhos vendados, segurava uma adaga e estava prestes a dispará-la contra o pobre coitado que mal podia movimentar os cílios.
— E essa demora? — disse Farmug, inquieto. — Assim me sinto obrigado a inverter essa situação!
Sem hesitar, Leon iniciou a ação. Ele disparou a arma. Entretanto, não assisti ao impacto, pois cobri o rosto.
— Por aqui já basta! — disse Alssami.
Daquela vez, Ela pediu que eu permanecesse de olhos fechados, pois iria fazer o mesmo de antes. Assim que fui orientado a abri-los, tive receio de ver aquele alguém agonizar até a morte, mas isso não aconteceu.
Eu estava num local diferente, porém, ainda dentro do castelo.
— Aqui se encontra um Dartion que você não vê há tempos. Rafiq Guacci — disse ao apontar para a direita.
Devagar, ultrapassei um portão de ferro e caminhei pela parte que dava acesso às celas. Para o número de Dartions presentes, elas eram pequenas. No entanto, quase todas tinham brechas frontais que me possibilitava ver os prisioneiros. Através disso, notei as condições precárias em que eles viviam.
O suor, a sujeira da pele e as roupas rasgadas os deixavam com a aparência de mendigos. Isso sem mencionar o momento em que presenciei dois deles utilizando restos de comida para tentar atrair um rato grande que por ali passava. Não quis parar para ver o restante da cena. O fato é que aquele lugar era horrível e fedia a peixe podre.