Capítulo XXII

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Alvo e o caçador os ajudaram a juntar a madeira e acender o fogo, enquanto Muir e Gully limparam a grama alta e os galhos quebrados, deixando um pedaço de chão para que se deitassem. Beith recuperou alguns suprimentos que mantinham escondidos com raízes das árvores trançadas, criando uma pilha desajeitada de frascos, potes amassados e carne seca de raposa. Havia até um violino desgastado. Quando todos finalmente se estabeleceram em torno do fogo, Gully pôs o violino no ombro e começou a tocar.

--- Toque mais alto, seu medroso! --- Nion gritou. --- Eu ainda consigo ouvir aquelas fadas. --- e tapou os ouvidos com ambas as mãos. Do outro lado do caminho, Muir se sentou com Beith ao seu lado, descansando a mão no ombro do anão. Nion e Brida estavam bebendo cerveja, seus movimentos soltos enquanto gesticulavam descontroladamente, absorvidos em outra de suas discussões.

Alvo se sentou ao lado de Syran, observando os anões caindo ao redor deles e empurrando uns aos outros enquanto dançavam uma dança selvagem.

Syran riu.
Diz a lenda que os anões foram criados para descobrir todas as riquezas na terra. Não apenas ouro ou pedras preciosas, mas a beleza no coração das pessoas.

Alvo olhou para ele, perguntando se a frase "a beleza no coração das pessoas" realmente tinha saído da boca do caçador. Olhou para a cintura de Syran. Havia alguns ossos de raposa, mas nenhum frasco de rum ou de outra bebida. Fitou seu rosto, notando pela primeira vez que seus olhos cinzentos eram claros. E falava lentamente e com cuidado, escolhendo as palavras. Faziam três dias, no mínimo, que não tinha bebido nada.

Syran apontou para Nion. O anão estava tropeçando  e cantando uma melodia tão alta nos ouvidos de Gully que o anão se encolhia.

--- Pergunte para mim como perderam a habilidade se nunca a demonstraram. Quando a rainha tomou suas minas, ela não tomou apenas seu tesouro... Ela roubou seu orgulho.

Alvo analisava-os. A maioria estava bêbada. Nion e Brida estavam caídos no chão, apertando a cara um do outro na terra. Gully dançava ao som do violino, com o suor escorrendo pelo rosto. Era difícil imaginar qualquer magia dentro deles. Como poderiam trazer o melhor das pessoas quando eles mesmos pareciam tão infelizes?

Quando Nion se ergueu para cantar outra música, Muir avançou em direção a eles. Beith segurou a mão do anão cego e o ajudou a alcançar um toco velho de uma árvore, onde se sentou para descansar. O anão tinha longos cabelos grisalhos e o rosto enrugado. Tinha de ser, pelo menos, 25 anos mais velho do que os outros. Alvo colocou a mão no joelho dele para que soubesse que ele estava lá.

--- Obrigado pelo que houve antes --- disse baixinho. --- Por ter me defendido.

Muir assentiu. Seus olhos estavam nublados, uma película branca cobria a íris.

--- Seu pai era um homem bom. O reino prosperou naquela época. O povo prosperou.

--- Havia mais de vocês? --- Alvo perguntou e Muir assentiu.

Gully se encostou no toco de uma árvore e tomou um gole de bebida.

--- Um dia, o grupo que você vê à sua frente desceu na mina para o revezamento de um mês de duração. Gully era apenas um menino. Quando chegamos de volta à superfície, não havia mais nada. A terra estava negra. Tudo e todos estavam mortos. Desapareceram. --- E estalou os dedos para mostrar a rapidez  com que tinha acontecido.

--- Isso foi um mês depois que seu pai morreu --- acrescentou Muir. Alvo balançou a cabeça. Lembrava-se daquele primeiro mês também. Ouvia as explosões para além das muralhas do castelo. Incêndios queimavam as florestas. Os soldados de Ismalia gargalhavam no pátio, se gabando das aldeias que haviam destruído e das mortes que haviam causado por vingança. Tinha apenas 7 anos naquela época. Dez anos haviam se passado desde então, mas sabia que o reino nunca mais seria o mesmo. Sentia-o na boca do estômago. Ele nunca mais seria o mesmo.

Ficaram sentados ali, Muir ao seu lado, até o pôr do Sol. Alvo dançou uma melodia mais alegre com Gully. Cantou com Nion e comeu o restante da carne de raposa, desfrutando de sua primeira refeição de verdade depois de um longo tempo. Mas, no final da noite, quando os anões adormeceram, não conseguia parar de pensar no que Muir havia dito antes, lá na floresta. "Ele está destinado." Era o futuro que Anna havia predito, em que ele iria se sacrificar e conduzir o reino. Quando as palavras saíram da boca de Anna, pareceram muito estranhas. Passou sua vida como prisioneiro da rainha, trancado numa masmorra. Que sacrifício poderia ser maior que esse? O medo invadiu seu peito. Tinha receio. Como conseguiria conduzir alguém? E, mesmo que tentasse, será que alguém o ouviria? Será que apenas o sangue bastaria?

Pensou em quantas pessoas no reino poderiam estar vivendo daquela mesma forma. Quantas já não haviam perdido completamente a esperança? Pensou na aldeia de Anna, em como as mulheres haviam fugido para a floresta, em suas casas em chamas. Lily não conseguia parar de chorar. Agora, depois de tudo o que Alvo tinha visto, era mais fácil acreditar na profecia de Anna. Não podia ver os homens de Ismalia arrancarem outra vida. Não queria ouvir os gritos das mulheres que perderam suas casas ou ver o rosto das crianças com cicatrizes, cortados apenas para que a rainha não as tirasse de suas mães.

Todos os tipos de pensamentos angustiantes invadiram sua mente. Sentiu o peso de todas aquelas vidas cair sobre seus ombros. Sentiu o medo da responsabilidade que estava por vir. Alvo demorou para conseguir fechar os olhos aquela noite.

[...]

Observou a densa floresta ao redor. Flores cresciam em torno do caçador, cujo rosto parecia mais calmo, bonito mesmo, quando ele dormia. Os anões cochilavam, espalhados em volta do que restara da fogueira. As brasas envoltas por pedras ainda irradiavam calor. À medida que a noite se enfraquecia e desaparecia, mais criaturas emergiam da densa floresta: os olhos amarelos das lebres brilhavam na escuridão. Seguidas por esquilos, castores e outros animais que alvo nunca sequer vira antes em sua vida.

Aves coloridas desciam das árvores. Duas pega-rabudas voaram diante de seu rosto, e suas asas coloridas cintilavam ao luar. O Príncipe reconheceu uma delas, percebendo que havia sido a ave que o ajudou quando estava trancado no castelo. Foi ela que o salvou.

Elas dispararam para longe, acenando para que as seguisse. Seu doce zumbido encheu o ar. Avançou pela floresta até uma ofuscante luz branca que brilhava nas trevas, um pouco além de uma pilha de ruínas de pedra. Enquanto se aproximava, a magia da floresta se mostrou. Os animais o cercavam, pequenos olhos brilhando entre os arbustos, se movendo conforme ele passava em meio as árvores altas. Pássaros voavam, formando um enorme grupo clareando  o céu.

Foi somente de bem perto que pôde ver de onde vinha a luz. Um garanhão branco majestoso estava embaixo de duas árvores gigantescas. O ar ao redor da criatura brilhava com uma luz dourada que ele não conseguia enxergar de onde vinha.

Alvo se aproximou do cervo gigante. Seus enormes chifres se estendiam por mais de um metro de comprimento. Ele se enclinou e o deixou tocar sua face. Seus grandes olhos negros o fitavam, como se soubessem tudo o que ele estava pensando e sentindo. Pressionou a cabeça contra a dele. Alvo podia sentir a respiração quente do animal em seu pescoço. Ele virou para a floresta, notando pela primeira vez que os anões e o caçador haviam acordado e o seguido. Todos eles estavam atrás dele, vendo a cena por detrás das árvores.

Beith balançou a cabeça em descrença.

--- Ninguém jamais o viu antes --- disse ele.

--- Ele o está abençoando --- Muir sugeriu.

--- Ele é único.

Alvo sentia a mais profunda paz. Ouvindo a profecia agora, ali, estava preenchido com o desejo de agir. Faria qualquer coisa que o reino lhe pedisse. Restauraria a dignidade do trono.

--- Com ouro ou sem ouro... --- Muir disse aos outros homens. --- Para onde ele conduzir, eu o seguirei.

A Caça ao Cervo Real [Romance Gay] - Livro IWhere stories live. Discover now