35 - Peão

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Fiz uma visita a outro mundo. Elisa e eu passamos uma tarde inteira contando histórias para garotas fascinadas pela casualidade da vida sem fantasia.

Gael foi literalmente expulso com a ordem de encontrar alguma coisa para fazer bem longe da rodinha de mulheres.

Para as pessoas ali, o meu mundo era tão tentador quanto o delas era para mim. Para mim a fantasia era o reino delas, para elas, era o meu.

Elisa e eu nos despedimos das meninas e fomos encontrar Selva, a filha da lua, o ser sagrado cuja existência trazia abundancia às plantações. Um ser tão raro que chegava a ser venerado pelos demais. 

— Senti saudade daqui. — olhei ao redor. Era tão cheio de vida e cores!

— Isabel adoraria esse lugar. — Elisa falou com um grande sorriso.

Isabel fazia o possível para imaginar os cenários, mas ver, sentir, tocar... viver... é diferente de só imaginar. Ela faria as malas e se mudaria, com certeza!

Ao longe pude ver Gael com os braços cruzados numa expressão muito séria. Ele ouvia atentamente o que saía da boca do outro ser. Uma ruiva alta com postura de realeza, tal qual ouvira a seu respeito. Elegante e imperativa. Um manto branco belíssimo escorria-lhe pelas costas.

O fogo ardeu quando olhei aquela raposa. A beldade arqueou para mim uma sobrancelha com desprezo. Foi a primeira vez que encarei quem me devolveu a memória.

Uma coisa insana rugiu nas minhas veias. Selvagem. O vento começou a soprar cheio de eletricidade. A garota levou as mãos ao pescoço, tentando aliviar a pressão invisível. Quanto mais o fogo me queimava, menos ela respirava. A raposa estava sufocando.

— Eu sei o que você fez, e sei quem você é. — soprei no rosto dela. — Fica longe dele! E fica longe de mim.

O vento se acalmou e a forca se desfez. Ela caiu de joelhos, ofegando ruidosamente.

Gael e Elisa ficaram abobalhados, olhando de mim para a criatura de cabelos vermelhos desgrenhados que se levantava, recobrando a postura de rainha.

— Como fez isso?! — Gael quebrou o silêncio.

— Eu... não sei. — falei a verdade.

— Você não vai... — Elisa se voltou para o manto branco com curiosidade. — esbravejar, espernear... sei lá... ter um chilique? Afinal... você é uma criatura sagrada... e ela tentou te matar!

A ruiva sustentou o meu olhar e o que vi ali foi... respeito.

— Foi justo. — a raposa respondeu.

— Alguém aqui pode me explicar o que está acontecendo?! — Gael exigiu, confuso.

— Ela me fez uma visita quando eu estava em coma. — respondi. — Uma lembrança que só encontrei agora. Selva me contou o que estava acontecendo enquanto eu estava morrendo aos poucos naquela cama. — encarei o verde dourado dos olhos que eu conhecia melhor do que os meus. — Você iria em uma viagem suicida por minha causa. E agora que sei disso, me pergunto se foi honesto sobre Shangri-la. — o caçador engoliu em seco. Não tinha sido tão fácil quanto ele dissera. — Eu já estava meio morta, mas ouvi com muita clareza a voz me contando como eu era responsável pela sua morte. Não importava o que eu fazia, Gael, sempre acabava machucando você.

— E o Ramon? — Elisa perguntou.

— Ele estava apenas cumprindo ordens. O aprendiz é fiel, leal a ela.

Gael entrou em ebulição.

— Por quê?! — cuspiu na cara dela.

— Porque eu quis! — Selva respondeu com petulância.

Ele mastigou a própria língua de ódio, tenho certeza.

— Eu exijo saber. — rugiu entredentes.

— Que memória fraca, caçador. — debochou. — Porque a nossa balança estava desequilibrada!

— Você não vale nada. Não merece a magia que tem.

— Cuidado! — ela estava cara a cara com ele, mais um passo e se beijariam. Foi a sua primeira demonstração de raiva. O primeiro sinal de perda de controle. — Acho que já deixei bem claro que cobro juros altos!

O chão sob os pés dela começou a morrer, formando um círculo de terra rachada e seca. O cabelo do Gael começou a congelar. Tinha neve sobre seus cílios. Um brilho azulado de gelo sobre a boca. A respiração dele saiu como uma nuvem de fumaça.

— É melhor pensar duas vezes antes de me insultar. — ela o libertou, embora nunca o tivesse tocado. Gael parou de congelar e a terra de morrer.

Ele deve ter acreditado na ameaça, porque cedeu e recuou, e isso não era do caráter dele.

— Então Alma foi só um peão. — Elisa constatou com desgosto. — O alvo sempre foi o Gael.

— Exatamente. — um olhar duro, frio e resoluto.

— Eu não estou entendendo. — falei.

A explicação veio de quem eu menos esperava. Selva me contou sobre o vexame público de outrora. Ela nunca foi apaixonada por ele, Selva deveria escolher alguém e escolheu o Gael, simples assim. Nunca um filho da lua fora desprezado, então... no instante em que ele disse 'não' nasceu a vingança. O desenrolar que culminou comigo sendo um peão no jogo não foi planejado por amor, foi por poder. O jogo é dela. Selva mostrou quem estava no controle. A minha morte foi planejada por mero acaso. O problema não era eu, nunca fui, mas eu era o necessário para quebrar o caçador.

— Naquele dia, fiz uma promessa a mim mesma. — Selva o encarou. — O seu coração iria sangrar! — um diminuto risinho de vitória. Ela se virou para mim. — Não foi pessoal, entenda isso. Você só deu azar de estar envolvida. Eu tentei matá-la, o coração dele sangrou, depois eu arriquei a minha própria vida para salvar a sua. E aqui está você, intacta, depois de ter usado inconscientemente a sua magia para tentar me matar de volta. As nossas balanças se reequilibraram. O caçador não me deve e eu não devo a você. — os olhos eram puros e sinceros. — Foi justo. E não me arrependo.

 E não me arrependo

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Olá amores!

Selva abriu o jogo sobre o prólogo do livro 2. Isso faz do Ramon alguém com menos culpa? 

Se gostou não esquece da estrelinha. Bjos!

Noite Sombria | 3Onde as histórias ganham vida. Descobre agora