31 - Anjo feito de noite

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Cheguei do ensaio cansada aquela noite, mas radiante. Consegui um papel de destaque na peça do evento.

— Oi, carissimi. Com fome? — Gael perguntou.

Quando eu entrava em casa dava de cara com uma criatura gostosa jogada em algum canto. Aquela vez o canto foi a cozinha. Minha vida se melhorasse estragava.

— Faminta! O que está fazendo? — ganhei um beijo e olhei dentro da panela.

— Omelete. Não quero me gabar — um sorriso torto — mas vai ser o melhor que você já comeu na vida!

Uma regata branca, uma calça de moletom e pés descalços completavam o desenho. Como alguém se torna o ar que você respira? Ou o sangue que corre nas suas veias? Eu não sabia se era saudável amar alguém daquele jeito, mas admito que me assustava. Me acostumei tão rapidamente com ele morando ali que parecia que já fazíamos isso há uma vida inteira e não há apenas duas semanas. Ele era o meu lar, constatei com uma certeza nítida.

— Cinco minutos. — avisei. — Preciso de um banho rápido.

Mal entrei no quarto e o laranja que eu detestava escarneceu na minha cara. Odeio esse álbum! Gael continuava revirando aquilo de todos os ângulos possíveis. Revivendo um passado que era só seu.

Ele ainda sentia a necessidade de voltar para ela, mesmo estando vivendo comigo, morando na minha casa e dormindo na minha cama. Era isso o que eu temia. No fundo, sabia que o primeiro amor acabaria ganhando. Eu sabia que ele me amava, mas também sabia que continuava apaixonado pela pessoa que não existia mais. E isso me deixava furiosa.

Eu não queria dividir o olhar dele com ninguém e ele olhava para aquele álbum com adoração. Me admirava ainda não ter colocado aquilo num pedestal! E para piorar tudo, eu nem podia chegar perto! Era o segredo dele. Correção: deles! Dele e dela!

Eu queria olhar para aquilo até que o objeto se inflamasse sozinho e de forma espontânea pegasse fogo até carbonizar. Depois eu olharia para as cinzas até que elas se inflamassem e carbonizassem também.

— Algum problema? — uma voz dita bem atrás da minha cabeça.

Dei um pulo no lugar. Ele parecia um gato andando. Não fazia barulho nenhum!

— Vou tomar meu banho. — peguei o meu chinelo.

— Algum problema? — repetiu, bloqueando o meu caminho.

— Nenhum!

— Por que ficou irritada? — seu olhar se desviou para as folhas de outono.

— Sente assim tanta falta dela que não consegue passar um dia sem prestar toda a sua adoração?! — acusei.

— Não é isso.

— Sabe de uma coisa, eu gostaria muito que ela estivesse aqui para consolar o seu coração, porque, obviamente, não estou dando conta do recado. — forcei a passagem.

— Não é isso! — Gael me segurou pelo pulso fazendo uma careta. — Não é isso.

— O que é então? — impaciência misturada com raiva. E despeito também, sejamos honestos.

— Sinto falta de mim mesmo. — ele me soltou.

Essa resposta me surpreendeu.

— Tem... uma parte minha, Alma... que hoje você não conhece, mas... ali dentro você me aceitava.

— E por que você não me conta?

— Porque... — suspirou e passou a mão pelo cabelo. — Porque tenho medo de perdê-la outra vez.

Noite Sombria | 3Onde as histórias ganham vida. Descobre agora