Minha menina de lábios cortados e meias três quartos. Meu sorrisinho mais risonho, minha pintura viva, a obra predileta e a única alegria d'alma. Se eu estirasse em um tapete esses meus quase cinquenta e um anos de existência, entre os intempéries enegrecidos que tomariam conta, haveria espacinhos sem massa, os vácuos que quem visse se perguntaria "que aconteceu aqui? estava morto?". Os ocos invisíveis preenchidos de Mel, quando saí da vida e do nada, fugi de contrário e fui feliz. Inquieto, temeroso pela aniquilação próxima, mas feliz numa vida paralela que se foi e portanto hei de ir também.

Assim se passou os dias que se seguiram a revelação de Mel de que tudo sabia: deixei meu anjinho saturado de mim sossegar da vida, e essa destituição de minha cautela sobre ela acabaria por tornar-se o pior de meus erros e arrependimentos. Mas ainda chegaremos lá. Trancada no quarto, soltando de som somente um soluço aqui e acolá, dando às minhas vistas apenas carreiras que dava de volta ao quarto, quando ousava sair para furtar comida da cozinha. Estava exausta, perversa, fez-me sofrer e, fora do alcance de minha percepção, ela ia percebendo que eu sofria e vivia em estado caótico por conta dela, passou, então, a planejar — em segredo — deixar-me pelo resto da vida da mesma forma decadente que me encontrava: um inútil desnorteado.

Hoje, como noutros dias antes desse, dancei até a sua porta, pus a mão na maçaneta, girei-a pela metade e desmanchando minha vontade com um trejeito na boca — um que Melinda dizia especialmente gostar — desisti. Fui passar um café, fui ler um jornal. Minha criança descansava, a minutos eu sairia e era eu possuidor dessas certezas que embolam e carregam os dias um a um, o cotidiano que nos faz relutar nas mesmas coisas — abrir uma porta — e fazer o de sempre — passar um café, ler um jornal. O verniz do êxtase da fuga e do amor tinha se ido; nós dois éramos arremessados a rotinas tão distintas uma das outras e em um período de tempo tão curto que eu não enxergava como cotidiano a minha relutância, a minha ida para a cozinha e meu sentar na poltrona. Nada tinha de igual há um mês, aquilo não se estenderia por mais uma semana, era assim. Agora, enxergo a banalidade. Havia a calmaria da rotina, o futuro dentro de horas que pode ser facilmente adivinhado; era tudo anfêmero e só essa madrugada — à luz do passado que isso se tornou — enxergo que era rotina. Aquela coisa costumeira de ver Mel — logo, logo, quando ficássemos bem um com o outro —, a dádiva de seu beijo e do seu toque, o gosto de sorvete que eu raptava de sua boca, era a rotina, era o amanhã, era a minha vida.

E então, dois toques energéticos na porta, pum, pum, um fraco e cortês, pum. O barulho que a cancela fazia quando aberta não havia chegado antes das batidas, por alguma circunstância, até mim; sem o rangido costumeiro que avisava das visitas quebrantes do dia, precisei de tempo para assimilar os toques à realidade; à demora, outros dois novos toques, pum, pum, e larguei o café e o jornal, abri a porta, vi um fardado e senti o cheirinho da manhã. Mel dizia adorar aquele cheiro; combina com pêssegos e folhas de ipê grudadas em chão úmido de uma madrugada chuvosa. Ela também adorava a dormida ritmada com a chuva batendo na janela.

— Bom dia, o senhor é Gregório?

— Sou...

Um pigarreado chato se desfez do homem. Melinda detestava quem precisasse de pigarros para dar início a uma notícia.

— O senhor tem alguma ligação com uma menina chamada Melinda? Ela tem por volta de quinze anos.

— Minha filha. Que tem ela? Ela está dormindo.

O fardado de pigarreados desembrulhou de dentro do bolso um pedaço de papel e estirou para mim. Sou Melinda. Moro na Rua Aimorés, Nº.... Procurar por Gregório. Ah, aquela caligrafia! Guardo no bolso e na alma aquele tracinho cursivo e desleixado que minha menina carregava nas mãos, não custo a falar que aquele filamento de Melinda era a minha segunda obra predileta, justo por conter dela.

AquáriosWhere stories live. Discover now