2 de Agosto de 1950

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Quarta-feira, 2 de Agosto

Sumi do papel, bem verdade. Mas me senti no direito. Já havia dito que não juraria nada e, bem, nesses últimos dias comecei a achar deveras piegas a ideia de uma voz celestial vinda do papel que me chamasse para por qualquer risco que fosse.

Sobre o tal o busto lá? É. Eu fui lá, prestei às ordens, fiz de bom homem e assim de passou. Ano que vem teremos o busto. Que assim seja, não dou a mínima e não quero falar sobre esse assunto, já me custou muita paciência essa história toda. Até teria uns detalhes que eu bem gostaria de ironizar nessas linhas... Mas não vou fazer, não vou. Hoje há uma coisa maior da qual quero falar, foi ela que me fez querer escrever por aqui. Mas, vejam bem, foi só tirar a caneta tinteiro do descanso e abrir o caderno para já ter vontade de falar besteiras, do palco, daquele povinho. Mas vou me conter. Talvez eu o faça, depois, se assim tiver vontade. Hoje quero mesmo falar de outra coisa.

Já é noitinha (sempre escrevo à noitinha), pela manhã acordei e relembrei o que, como em um ritual, já começo a recordar desde o dia 16 de Julho: hoje era dia dois. Dois de Agosto! Que data infeliz. Mas já entro em suas causas.

Pois bem, lembrando desse infortúnio, desci todo amuado para ficar ainda mais amuado. Acontece sempre assim. Ninguém lembra dessa data, nenhuma das duas crias, nem Teresa, nem os criados. Falta-me o consolo e sobra-me desprezo. Custo a crer que não fazem por mal. Para mim, há uma grande conspiração contra a minha pessoa, querem me ver na miséria, com todos os sentimentos tristes e angustiantes que os seres humanos podem ter. Fiquei à mesa, tomando meu café, fingindo que lia o jornal, enquanto batia meu pé na madeira embaixo do móvel. Teresa ficava me olhando irritada e a cada vez que fazia, eu aumentava a intensidade das batidas. Queria mostrar toda a minha impaciência. Eu estava gritando que hoje era dois de Agosto! Mas ela só fez deixar metade do café para tomar e saiu da mesa soltando ares pela boca. Dou-lhe essas pequenas oportunidades para se fazer cumprir sua função como esposa, mas ela as desperdiça. Depois quer me cobrar dever de marido. Tenha dó! Depois do odioso bom dia, não pus os pés na fazenda, pois nunca os coloco lá no dia dois de Agosto.

À tarde, fui até o epicentro de tudo. Sabem o cemitério que citei nas últimas linhas antes desse escrito? Pois bem, fui eu lá, de baixo de sol, recolher-me nos fundos das lápides encrustadas na terra em que eu próprio encontrarei o meu fim. O túmulo de mamãe ficava bem escondido, onde dormiam os mortos enterrados há muito tempo. Parado entre a gente morta, no meio de todo o abandono e decadência, sentido a morte em seu sentido mais completo, o esquecimento, não via sentido algum em continuar ali. Não trouxe flores ou outro gracejo, afinal, para quê? Nem mesmo era necessária minha visita até lá, que servia somente para ver um nome gravado em uma pedra coberta por lodo.

Há somente uma resposta para o porquê de continuar a prestar as vindas, todo dia dois de agosto, todo ano; tradição à dor. As coisas que me aconteciam na juventude me marcaram de uma forma descomunal. Daí que entra o episódio que quero contar-lhes no dia de hoje. Pois estou bem assim, ainda agora, abrindo meu coração a qualquer um que me peça. Oh! Nem precisa pedir. Basta-me um olhar minimamente carinhoso e sou capaz de começar a soltar lágrimas. Estou tão fora do que costumo ser no dia de hoje.

Mas vamos lá.

Ela morreu em um dois de agosto de 1914. E, meus amigos, bem no dia que ela se fora, chegou um moço todo atordoado lá da capital, dizendo trazer notícias lá da Europa. Estavam em Guerra! Tudo ia se acabar! E eu chorando no quarto, com os joelhos no chão e a cara na colcha da cama. Que me importa isso? Eu perguntava a Gastão, o casula, que ficava a todo instante repetindo que Estavam em Guerra!

Pela ida de mamãe, ele soltou algumas tão somente lágrimas ao amanhecer, quando acordamos com a notícia que nossa mãe, a mulher de pulmões fracos, se foi para ter com a justiça divina. Eu desabei em desespero. Minha angústia crescia ainda mais quando eu olhava para os rostos dos outros e não encontrava a mesma dor. Nem meu pai, homem que sempre foi total fiel à esposa, parecia esboçar expressões profundas e verdadeiras. Enquanto eu esperneava, o mundo parecia não se importar com o cadáver que saia pela porta! Minha mãe está indo embora, não irão fazer nada? Ah, o apego maternal! Sempre foi tão forte em mim. Não porque mamãe e eu éramos muito unidos e de constante afagos. Não era isso.

AquáriosWhere stories live. Discover now