2 de Maio de 1951

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Quarta-feira, 2 de Maio 

Não, não poderia deixar Melinda sozinha novamente. Agora eu era conhecedor de sua natureza perversa e precisava aplicar-lhe minha pena: trancafiei-a de tudo e todos. Eu saio, tranco a porta, eu chego, abro-a, porém ela não ultrapassa o corredor do terceiro andar. Ela nada falou a princípio, calou-se sobre tudo. Baixou a cabeça, resignou-se a ponto de não pronunciar uma única palavra por uma semana inteira. Eu trouxe-lhe o necessário — comida três vezes ao dia, água —, usava o banheiro nas horas em que eu estava e podia acompanha-la. Os gritos do acontecido haviam chamado a atenção dos outros pensionistas intrometidos, a curiosidade geral aumentou com a ausência de Melinda nas refeições. Desconfiados, cessavam as suas conversas quando eu me aproximava, além de já conseguir ouvir diálogos como "Teria ele a matado? O cadáver da menina em cima de nossas cabeças!" "Que besteira! Eu a vejo usar o banheiro", respondia Meire, minha vizinha de quarto. Não movi um dedo para tentar sanar com as dúvidas dos infelizes, mantendo minha menina enclausurada do mundo e dos olhos deles.

Aos poucos, Melinda começava a soltar suas primeiras palavras, de forma tão humilhante e envergonhada que meu coração se despedaçava. Perguntava-me reticente "pode levar-me agora ao banheiro?" e eu ia, conduzindo-a de forma tão impessoal, esperando por ela escorado na porta. Esse abismo entre nós judiava-me a carne como chicotadas, durante todo o dia, estando eu longe ou não dela. Oh, e quando ela vinha com seu "obrigada", a outra chula palavra de seu curto reportório nesses dias claustrofóbicos de tristes! Entregava-lhe a comida e balbuciava seu obrigada, dava-lhe água sem que pedisse e vinha seu obrigada; olhar baixo, pose frágil, evaporaria a um toque meu. Nessas horas intermináveis de ócio em que a pus, minha menina só fazia ler, sequer ousava tocar em seu toca discos ou incumbir-se de outra tarefa que não a leitura. Esqueceu-se de Piaf, ou apenas estava triste demais para conseguir se entreter com música, quem sabe já estava esquecendo-se de viver.

Quando eu chegava, ela toda apressada escondia o livro de baixo de seu travesseiro, forçando ainda mais seu ócio para mim. Passei a ver sua pilha de livros indo embora, logo não haveria algo novo; lembrei-me de quando me contou dos dias ociosos naquele fim de mundo de Minas, quando seus livros estavam acabando e logo não teria mais nada para passar o tempo. Meu coração, tão frágil quanto à sua figura, desarmou-se e comprei-lhe dois livros, que depositei em sua cama com toda a minha indiferença. Ela murmurou seu "obrigada" a eles. Quão humilhante! Minha menina tornou-se não mais que uma figura translucida — quase um defunto — da garota de lábios mergulhados em batom vermelho e cabelinhos dourados bem cuidados, que caminhava saltitante pelas ruas de Doracy.

Mas até que ponto, senhores, poderia eu confiar naquela sua fragilidade? Calada, submissa, seria, quem sabe, somente a sua natureza perversa tentando manipular-me. Talvez estivesse mais forte do que antes, fingia a falta de ânimo com a vida no intuito de comover-me. Se era esse seu objetivo, estava tão longe quanto perto. Eu, em minha indiferença e coração fraturado, já não aguentava viver sem ama-la. Não podia leva-la para tomar um sorvete, seria bonzinho demais da minha parte. Tampouco poderia ser maléfico e fingir que fui a um bordel, o que sabia que a irritaria por demais. Que faria, então, para que as coisas voltassem a ser como antes? Era preciso de um equilíbrio inabalável para pôr tudo no lugar. Eu, senhores, não havia a tocado uma única vez desde do acontecido. Já não havia nojo àquela altura, somente uma inquietude nervosa de toma-la. Eu, com meu ódio, a amava da forma mais desesperada e louca. Ela precisava voltar a entender que era eu o seu provedor máximo e, acima de tudo, compreender minha vontade de destruí-la para reconstruí-la em seguida. Minha crueldade seria um bisturi a decepa-la, o meu amor seria a cura.

Em uma noite, após ela terminar o seu jantar e afastar o prato para frente, observei-a de uma forma como nunca antes fizera na vida, profunda e perspicaz; ela me encarou igualmente, com ar interrogativo. Seu cabelo todo desgrenhado, uma depreciação enrustida em seu olhar enegrecido pelo que estava sentindo — seja lá o que fosse. Olhava-a pela reentrância das roupas, os resquícios de pele não escondidos, e tudo fazia tão menos sentido para mim. A falta de significância a tudo deu-me o ímpeto necessário para — não sem um fundo de medo — desabotoar minhas calças, enquanto Melinda franzia a sua testa para mim.

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