14 de Fevereiro de 1951

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Quarta-feira, 14 de fevereiro

Durante os últimos dias, levei Mel para conhecer Belo Horizonte, a cidade que eu próprio não pisava em passeio há anos. Longe de seu aborrecimento do primeiro dia, minha menina deixou-se empolgar de tão semelhante à minha empolgação de décadas anteriores, quando eu era somente um estudante de Direito. Com vinte anos, pus meus olhos e pés pela primeira vez na novíssima capital de Minas Gerais; o mesmo olhar brilhoso e a mesma inquietude nas passadas eu pude encontrar em Melinda. Levei-a, como tarefa primeira, para comprar roupas, que eram tão escassas desde sua fuga. Eu próprio me vi obrigado a gastar parte da quantia finita com trajes para mim. Para meu deleite, minha menina optou pelas saias azuis anis, as blusas amareladas e os sapatinhos vermelhos, cada roupa que escolhia era sempre numa variação diferente que não alterava suas cores. Melinda permanecia com a mesma coloração — de longe uma das minhas coisas favoritas nesse mundo —, no entanto, ia abandonando seus rabos de cavalo de cada lado, quando eu perguntava-lhe o motivo do cabelo solto e o diadema, ela respondia que talvez sua tia tivesse razão sobre a infantilidade do antigo penteado, estava na hora de mudar. Olhava-a, sem suplicar para que trouxesse de volta seu antigo cabelo, dando-me por conta que aquela Melinda logo seria uma miragem, cresceria e o que agora eu via de forma tão certa se transformaria em um eco do tempo. Engolia o gosto ruim da boca, sou eu sempre tão preocupado com o futuro!

É compreensível em certo ponto; afinal, há uma incerteza muito inquietante no amanhã; coisas que fogem do meu alcance e que poderão, para minha desgraça, tirar Melinda de mim com um sopro. No futuro, talvez a tomem, talvez ela própria se vá; basta um pensamento pequeno para que Melinda repare no quanto sou repugnante e perceba que há um tanto de gente melhor espalhada por esse mundo. Leva-la para Belo Horizonte — gostando eu ou não — também é isso, apresentar-lhe à uma vida repleta de pessoas que podem faze-la perceber que ainda há muito em muita coisa. Se, senhores, um dia Melinda olhar para mim e souber disso? Desperta, irá me ver como um desconhecido sentado no canto, terá medo de compartilhar o mesmo ar com um completo estranho e fugirá, dando-se por conta que eu nunca fui nada, enquanto ela tem o poder para conseguir o tudo. O futuro guarda também a isso, esse é o meu problema com ele. As mais impensáveis hipóteses o habitam, sem que alguma me elucide de algo, enquanto que só me resta considerar todas as possibilidades tão incertas, sabendo unicamente que não fazer nada trará resultados tão imprevisíveis quanto fazer alguma coisa; bons ou maus, irreversíveis ou temporários.

Veem, senhores? Notam como pode ser-me tão custosa essa felicidade? Vivia como que cambaleando em vielas, esperando sem saber, empurrando tudo porque só restava-me isso, eu respirava e tinha que viver. Matinha, empurrava, cedia, nunca vivia. Não arriscava fazer algo diferente do protocolo ou alguma coisa que pudesse pôr em xeque a imagem que por anos construí de forma tão sólida. Então, veio Melinda. Arrisquei, amei, vivi e senti o que nomeiam de felicidade. Vivo-a agora mesmo, estou feliz. Porém, isso é o que me inquieta. Felicidade é um estado, não uma permanência. O futuro também virá, como a própria Melinda veio, trazendo coisas que só posso supor, pronto para fazer de mim um mero expectador de cenas, pondo-me incapaz de agir para evitar ou buscar pelo desconhecido; muito por ignorância e sobretudo por medo. Minha felicidade, assim, vem acompanhada desse mal-estar, encoberta por um verniz temporário que não me deixa esquecer da mutação das coisas. Posso eu dizer-me feliz, após tudo isso? Afirmo que sim. Há Melinda.

É assustador pensar que em uma única pessoa — tão jovem e pequena — se concentra o motivo dessa sensação maravilhosa que reside no fundo das minhas células e canta-me durante todo o dia. Bem como — também sei — minha inquietação é, por parte, culpa desse doce anjo jovial. Falta solidez em Melinda; ela é um líquido que, às vezes, consigo colocar na mão, para logo escapar: cai, foge, meu medo é que evapore. Se ela demonstrasse mais dedicação a mim ou um amor radical eu certamente não me veria tão paranoico como agora estou. Não duvido que ela me ame, ela me dá algumas certezas que não me deixam crer no contrário. Talvez seja a sua forma tão irreal que me leva a acreditar que Melinda possua uma natureza volátil, quando na verdade está presa a mim, fixa e impossível de ser seccionada para longe. Afinal, vejamos, Melinda é deslumbrante, olha-la é, em partes, desacreditar que algo tão divino seja realmente meu. O incrédulo me leva à paranoia. É isso, senhores, há de ser! Colocar as palavras no papel não me revela o futuro, mas põe minha cabeça no lugar. Curioso, não é? Há a folha de me revelar o presente? É isso que passo a perceber. Traço os fatos e minhas aflições, pondo-os de forma tão clara que pontos ocultos me saltam, levando-me a considerar o antes inconsiderável.

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