3 de Junho de 1951

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Domingo, 3 de junho

Senhores, se antes a reclusão de Melinda era por motivos de castigo, acabou por virar uma necessidade. O seu pescoço àquela altura havia virado um cilindro machucado, as mangas da roupa deixavam à mostra os mais variados tons de lilases feitos por mim, sequer o pedaço de pele que imergia entre o topo de sua meia e a barra da saia escapara de meu amor. Com um cuidado maior sob ela e com quem a visse, as atenções e olhos julgadores dos outros pensionistas se intensificaram sobre mim. Não permitia que Meire a visse enquanto eu a guiava para o banheiro no corredor — não com as manchas tão gritantes—, não havendo nem a mulher para confirmar que Melinda estava sã. Então, há um mês, aconteceu de Vânia chamar-me em um canto, toda desconfiada, tateando as mãos pela cintura e evitando-me encarar com clareza. Enquanto a mulher parecia estar juntando sua coragem para dizer-me sei lá o que, impaciente joguei-lhe:

— Há algo que queira me dizer?

— Oh, Senhor Gregório! — soltou em um genuíno alivio — Não tenho nem boca para lhe falar...

— Pois tente. Há algo se passando sem que eu conheça, bem sei.

— Nota, Gregório? Pois bem, longe de mim intrometer-me na vida pessoal de meus hóspedes, mas há certas coisas que não podem ser ignoradas. Eu bem que ignoro, finjo não ver e olha que finjo bem! Mas nesse caso não é bem um incômodo meu.... é do resto da clientela.

— Que há? Para que tanto arrodeio se pode simplesmente falar-me?

— O senhor terá que ir! É uma decisão minha, de fato, mas não sem razão. Rogam-me para que eu faça isso, toda a gente. Oh, meu Deus, que digo eu? Agora o senhor culpará os pobres coitados. Pois bem, que culpe, mas não há volta. Terá que ir, já não conseguem fingir não vê....

— O que não conseguem fingir não vê?

— Linda, senhor Gregório, a sua filha. Na verdade, eles não fingem não ver, esse é o problema... ela sequer dar as caras. Todos dizem ouvir coisas estranhas vindo do quarto... Oh, não me peça para continuar falando. Apenas estranham o senhor e ela, bem como seu repentino sumiço. Ela era muito amiga do rapaz, Cássio... ele andou preocupado com o estado da menina. Ninguém ousa perturbar o senhor com isso, já que é motivo de rubor tal intromissão. Sobrou para quem? Para mim! Restou que eu lhe falasse para arrumar outro lugar para ficar, pois aqui já não é mais bem-vindo. Não guardo nada de ruim do senhor, mas...

Fiz um sinal com a mão, implorando para que ela parasse com aqueles lábios acabados em rugas. Já havia entendido há tempos a desconfiança dos infelizes para o meu lado. As curtas e alfinetadas insolências que se alastravam pelos momentos em que eu compartilhava de minha presença com eles, suas amarguras pessoais, seus corações ensombrecidos por grossas camadas de podridão; gente comum e portanto incapaz de compreender a qualquer beleza. Era bem verdade também que eu não almejava ficar com a minha Melinda para sempre naquele lugar que se tornava cada dia mais detestável; a cômoda encostada na parede, o criado mudo que dividia as camas, os lençóis e as cortinas da janela, as débeis e dolorosas noites haviam sido assistidas por todos esses objetos que jamais esquecer-se-ão do rosto meu e de Mel. Abalados quanto nós próprios, os inanimados seres sem voz gritavam para que fossemos embora, já não éramos toleráveis às suas vistas inexistentes. Não havia com o que me conformar, sequer já havia me conformado antes. Minha partida seria como que um dar de ombros indiferente; tanto me fazia uma coisa ou outra.

A velha viúva deu um prazo de curtos quatro dias para que tomássemos a vida longe da dela e em dois eu já tinha o novo teto. Uma casinha de aluguel, com espaço somente para eu e Melinda, sem qualquer outro intrometido; eram ausentes, portanto, possíveis pretensões amorosas que nos levariam a discussões intermináveis. Para Mel, não haveria com quem mais conversar, olhar ou compartilhar a vida além de mim. Seríamos nós na casa miúda, encolhida entre duas árvores na rua de fileiras de casas igualmente ordinárias. Um quarto, uma cozinha, uma sala, um banheiro e um outro meio quarto. Portão cinza respingado de restos de tinta vermelha, um jardim de concreto estendendo-se por dois metros até dar com a porta de entrada, um murinho minúsculo, onde reside um puxadinho sem tento que outrora poderia ser um acúmulo de bagunça. A casa que faz qualquer um bater de frente com suas decadências interiores, não precisávamos de mais que isso.

AquáriosWhere stories live. Discover now