20 de Junho de 1951

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Quarta-feira, 20 de Junho

elinda possui a incrível capacidade de destruir a tudo de forma tão rápida quanto seu jeito de construir. Ah... senhores, aconteceu. Foi hoje. Mentira minha, a coisa começou dias atrás. O papel elucida-me o que já estava às claras há um tempo, fui incapaz de pensar e reagir para evitar qualquer causo. Aconteceu e já não há o que fazer sobre antes e depois.

Onde que se inicia tudo, então? Agora, vejo bem! Foi em uma tarde de domingo. Eu estava lendo na poltrona da sala, Melinda na porta de entrada, com metade do corpo para fora. Jogava-me uma olhadela em intervalos de trinta segundos, suas pernas indo e vindo numa impaciência fora do normal. Demonstrava tamanha ansiedade para começar alguma coisa que eu já estava para perguntar-lhe "o que diabos quer?".

— Que está fazendo o senhor? — conseguiu, por fim, puxar a conversa.

— Que acha? — devolvi com um sorriso, balançando o livro em minha mão.

Assentiu e voltou a olhar para a rua.

— Não quer me dizer nada?

— Ah, eu? — sua surpresa fingida era tão evidente, minha menina era uma péssima atriz — Não. Mas eu estava pensando aqui.... agora....

— Em que? Acho eu que deve pensar em muita coisa.

Olhou para baixo, empurrou o chão com o pé e lançou-me:

— Não sente falta de Teresa?

Pego pela pergunta, franzi a testa, passei a mão pela boca e quase gargalhei.

— Por que sentiria? Não sinto falta de nada daquele lugar imundo.

— Por que sempre que fala de Doracy tem que vir com esse tom de desdém?

— Talvez porque lá seja um lugar imundo. Mas por que esse interesse por Teresa e ressentimento pela forma como falo daquela cidadezinha de merda?

— Por nada! — apressou-se em falar, explicando-se com exasperação nas alturas — É que sinto falta de lá, sabe, algumas coisas. Pouquinhas.

Ah, senhores! Deveria eu ter percebido tudo naquela sua fala. Sua impaciência, seu jeitinho cuidadoso com o qual chegou para contar-me de sua saudade. Pisando em cacos de vidro, a fala mansa, a auto explicação excessiva e exaltada. Teria cortado suas ideias ali mesmo; uma fala mais bruta seria suficiente para espantar qualquer premeditação da sua boba cabecinha. Um olhar furioso, uma puxada em seu braço, qualquer coisa ou a junção delas poderiam ter evitado o que veria em seguida. Vejam, senhores, apercebam-se disso antes que ousem julgar-me por meus meios de lidar com Melinda. Enxerguem como ela fora toda atenciosa em jogar-me sua saudade, deem-se por conta de sua cabecinha perversa e traiçoeira agindo contra mim.

Houve a coisa de ter começado nesse exato ponto? Nem sei. Talvez antes de sua impaciência ela já tivera ousado, com sua fala sendo apenas um pedaço de sua consciência maltratando-a pelo que fizera comigo. Antes ou após, não mais importa, senhores! Fez e eu sequer sei o que ela fizera com certeza. Pois, caros, aconteceu de Melinda ficar mais calada, isso uns cinco dias antes de eu conhecer a verdade. Assumiu aspecto pensativo, olhando para o chão, pensando em coisas tão profundas quanto a encarada ao nada que dava. Aérea, perguntava-lhe no que estava pensando e respondia-me com um sorriso falso — daqueles em que as reentrâncias da pele parecem mortas — e com um "em nada". Bastou-me isso, 120 horas de dias e noites, para que eu sentisse o quão escassos se tornaram seus carinhos espontâneos, aqueles nos lugares inusitados e sem motivos aparentes, os impossíveis de serem atuados. Largou a palma da minha mão, meus cabelos, deixou para lá seus beijos em minha bochecha e suas caricias em minha barba. Deu fim a tudo que era Mel, fechou-se em um ser inexpressivo e taciturno. Não podia eu força-la a voltar com suas particularidades despretensiosas ao meu corpo, eram coisas que não se impunham e por essa característica singular eram minha parte preferida em ser amado por Melinda. Porém, já não conseguia ignorar suas ausências e tampouco era de meu feitio perguntar-lhe sobre o que se passava em seu coração. Indaga-la sobre estar bem ou o que se passava em sua vida eram as opções mais óbvias, mas eu não saberia manter uma conversa dessas — e ela sabe que sou assim, sensível porém incapaz de conviver sob uma áurea sentimental, mesmo que momentânea. Portanto, não havia nem motivos para ela cogitar exprimir sua falta de desmotivação a tudo para chamar-me pela atenção. E outra, havia seu sorriso falso e até uns carinhos fingidos. Estava atuando como que para me esconder alguma coisa, não pretendia chamar a minha atenção para seu íntimo. Deveria eu ter notado a isso também! Escondia-me algo, era isso. Mas não, fiquei preocupado com seu bem estar, nunca chegando a pergunta-la se estava bem, mas cuidando para que ficasse.

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