4 de Julho de 1951

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Quarta-feira, 4 de Julho

Faz oito horas que aqui em casa estou e desde então não fiz outra coisa senão rastejar os pés de um canto para outro da sala, do quarto, do banheiro, tecendo o que se passara; que eu caminhe esta casa, uma trilha, de cá até o mar, remoer e cozinhar o que já foi não me trará coisa alguma que não seja o que já bem sei. É madrugada, bruta e lotada de si, quando já estou no nono sono; mas não tardará para os senhores concordarem de que não haverá sono essa noite, talvez a dormida profunda de desnudar-se à lua e renegar-se às preocupações por inteiro jamais retorne. Penso que tive ontem meu último descanso dos olhos e que a partir de hoje viverei em pena de permanecer desperto para sempre, remoendo de canto para canto, cozinhando o que se fora daqui até o mar. Se penso solitário de meu corpo — que se despedaça enquanto não bulo em um buraco frívolo ou não tento alcançar o teto —, a loucura me vem pois somente pensar é mais do que suficiente e as coisas necessitam estar-me ocas.

Se escrevo aqui é somente por isso, porque estou à beira da insanidade e já não há mais ninharias para ocupar-me os movimentos e as pernas já estão cansadas de erguer-se por nada. É madrugada, silêncio acompanhado de um miado que se perde no vento que aspiro pelo choro que fede a chão. Não lembrava desse caderno, tampouco da existência dos senhores e menos ainda há pena de minha parte em confessar-lhes isso, há coisas demais; uma parte do mundo — a maior delas — desmanchou-se e junto levou minha memórias e certezas; sequer sei se ainda recordo-me de mim nessa linha em que me lembro. Rememorei para esquecer-me de forma tão carniceira que nem a releitura da última linha ou desta me fará lembrar de mim ou das rememorações. Aqui lembrei e aqui esqueço. Tudo parece-me um cenário turvo à vista. Já devo estar delirando de louco, quem sabe meu estado já não fosse esse há muito e só agora dei-me por conta.

A coisa é essa: sem motivo ou importância, depositei a primeira letra nessas folhas, após décadas de esquecimento que se romperam com meus cinquenta anos. A coisa também é esta: sem motivo e importância, com o esquecimento de horas que se romperam com o ócio e medo da loucura, colocarei a última letra, pois já não há mais o que ser dito. Haverá a dor, hoje e amanhã, e minha existência — ou o que me resta dela — se dará como não mais que isso; um prolongamento do maior dos desesperos. Que poderei contar sobre a dor senão que ela é dolorosa? Isso o senhores já conhecem, não há nada novo a acrescentar. Não sou um literato para fazer dessa coisa uma poesia ou um músico para fazer da minha dor uma cantoria aos ouvidos; nunca fui, sempre pleiteei, mas não é hoje que irei ser. Sou só um homem, desprezível, lembrado apenas pelos que me tem desdém, e logo não haverá nem a eles e meu fim — que já duvido ser em terras de Doracy — se dará no anonimato, pois a coisa também é esta: não haverá ninguém para arranjar uma lápide a esse homem ou cuidar de um caixão de madeira clara para lhe servir aos ossos ou vesti-lo de um paletó feito numa alfaiataria. Que fazem com as almas assim, esquecidas de si e esquecidas pelos outros? Eis meu destino e que farão dele: cairei sobre este chão, esse mesmo de cimento batido e castigado, não haverá tempo para correr e ir deitar-me na cama; no chão umas moscas e vermes farão festa com o defunto e assim se passarão os dias e as noites até que um vizinho de nariz de pluma nota o odor asqueroso do meu cadáver putrefato e vai conferir, pois ainda não sabe do que se trata; dá de cara com a podridão, esquiva-se, sai pela rua e conta a outros o que viu. Ah, esse homem, que nem sabemos o nome! Que trabalheira e quanto gasto será vela-lo! Não, senhores, seus corações não são de todo insensíveis e chegam a lamentar-se com a morte sem nome e sem cara, mas as lástimas brotam e perduram por não mais que um dia, depois do choque há a pergunta: Que fazer com um homem assim? Irão arranjar-se a seu modo e meu destino conhecido se encerra aqui. E depois? Nem sei! Penso que irei ter nas mãos de estudantes de medicina, como os cadáveres dos sem nome nos laboratórios das faculdades anatômicas. Esse meu corpo, que amou, sofreu, foi tocado e tocou, sendo dissecado, acabado, conservado em formol e em oraçõezinhas que me farão — sei de uns estudantes que bem as fazem —, mas que me valerão o formol e a reza? Nunca coisa alguma me valeu algo, quem dirá numa hora dessas! Oh, senhores, estou indo, estou mesmo indo! Mas não sem razão, não pelo nada. É bem verdade que vivi por nada, acabarei em morte anônima e toda minha vida se passou em variações de tons incolores. Mas a morte, senhores, essa eu não darei ao nada. Essa faço eu questão de oferecer às rasas e poucas alegrias que se passaram e não voltam. Doar-me-ei a ela e em nome dela!

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