23 de Janeiro de 1951

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Terça-feira, 23 de Janeiro

Pela manhã, achei que havia de ter recebido a melhor notícia em anos. Chegou para mim na forma de um bilhete, entregado por um rapazola faz-tudo. O remetente eram os Dorneles. Em letras tão claras quanto a voz da odiosa Sara, lia-se "Precisamos tratar de assuntos referentes à Melinda, contamos com o senhor depois do almoço. Se houver algum inconveniente, podemos arranjar outra hora. Ela já chegou da casa da tia-avó". Com tanta formalidade envolvida, imaginei que o assunto a ser tratado era a escola da minha menina. Ah, eu pouco dei importância ao resto! Melinda estava de volta! Evaporou-se o mundo todo e minhas preocupações acerca de seu sumiço nas cartas. A poucos metros de mim, seu coração batia, tão pertinho do meu que vivia por ela. Éramos um só! Mesmo radiante em meu estado, não pude deixar de estranhar o cuidado em que a voz dos Dorneles teve em noticiar que a menina se encontrava na cidade. Soava como uma isca para eu beliscar, um modo nada sutil de chamar pela minha ida até lá. Era como se soubessem de nosso amor e não tivessem medo de mostrar que sabiam.

Não havia tempo para criar caso em minha cabeça! Já havia sofrido demais, que deixasse a alegria habitar-me um tiquinho. Esqueci-me e deixei de pensar. Afinal, quantas horas existiam até o almoço? Oh, elas pareceram durar mais que os quase quarenta dias que fiquei longe de Melinda. Arrastaram-se de um jeito particularmente doloroso. Foram semanas sem o rosto pálido da minha menina, sem seu batom decorando seus lábios. Pensar que eu os beijei, que tive minhas mãos agarradas a sua cintura! Sonhava com isso toda santa noite, editando somente o cenário. Havia noites que eu me desesperava notando que os traços dela já começavam a se desvencilhar em minha memória, mais alguns dias sem ela, eu sabia, e os detalhes mais minuciosos iriam se ir. Daria adeus ao seu cheiro, a cor exata de seus olhinhos. Nessas horas, dava um sobressalto no divã, desesperava-me. Lastimei-me não ter uma única foto dela para guardar em meu bolso!

No almoço, terminei de engolir a comida mais cedo que o normal e fui direto para a casa dos Dorneles. Os dias suportados já havia se ido quando eu dava meus últimos passos até casinha cinza, não havia de ter mais lástimas. Não conseguia tirar meu sorriso, tampouco a inquietação que meu corpo demonstrava em cada movimento meu. Estava em êxtase por saber que era uma porta que me separava de Melinda. Tomaria meus cuidados, claro, não pediria para vê-la assim que colocasse a cabeça para dentro. Trataria do tal assunto sem esboçar curiosidade quanto à minha menina e, no final, comigo já se despedindo, exclamaria um "ah!", como quem lembra de algo, perguntando por ela em seguida. Oh, eu tinha que me aguentar, senhores, tinha! Porém, foi a porta se abrir e o cheiro familiar da mobília invadir-me para eu ter vontade de correr atrás da minha flor. Que mal tinha em desejar vê-la antes de qualquer coisa? Seria algo assim tão impuro toma-la na frente daquele casal de imbecis? Só aos olhos deles!

Sr. Dorneles estava sentado no sofá, com as duas pernas estiradas em cima de um tamborete. Sara me recebia de pé, olhando-me torto enquanto ensaiava um sorriso.

— Homem, perdoe-me por não recebe-lo de pé! — exclamou Dorneles, oferecendo-me a mão — Irei te dar apenas um aperto de camarada. Voltei da viagem sem conseguir por um pé no chão. Deve ter sido algo no meu nervo ciático, ainda não sei. Parece que um velho sequer pode se dar ao luxo de se aventurar um pouquinho por aí.

— Que surpresa terrível! Quando foi que retornaram?

— Estamos aqui desde o ano novo, — respondeu a odiosa esposa — mas não colocamos a cara fora desde então. Sou toda cuidados ao meu marido. Mas, por favor, sente-se senhor Gregório. Aceita café?

— Oh! Obrigada, mas não, estou com certa pressa — para ver minha menina — Vim para conhecer o tal assunto que desejam tratar. Sobre Melinda, não é?

AquáriosWhere stories live. Discover now