Quarta Carta

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Douradinho, Minas Gerais, 26 de dezembro, 1950.

O senhor a as tuas palavras tão cheias de ardor. Elas estão distantes da realidade, não é? Como o amor costuma nos afastar. Elas me tocam, não ache que não. Dou a entender que não me importo? Esqueça. Eu me sensibilizo ao lê-las. Chego a gostar demais delas, em outras horas acho-as engraçadas e às vezes apenas não sei o que pensar delas. Fico olhando para o papel, esqueço que penso, de súbito caio na risada ou sorrio de leve por ter gostado. É isso. Gosto ou rio ou não penso.

No entanto, o senhor se esquece que ainda tenho quinze anos. É bem verdade que dentro de cinco dias completarei dezesseis, mas continua não sendo muita coisa, que é onde quero chegar. Minhas ações, portanto, ainda devem ser respondidas a terceiros, quando não feitas pelos próprios. Ainda que discordemos sobre isso, eu ou o senhor, é assim que as coisas são e continuaram a ser por um tempo. Para o senhor, pode não haver tios, sua esposa e todo o resto... para mim, no entanto, ainda há meus tios. Nesse quesito, sou mais sensata que o senhor, mesmo com bem menos idade. Reconheço que a resolução para os problemas não é o esquecimento. As coisas permanecerão a existir de forma independente a nossa vontade, com elas suas ações irão atingir a nós dois. Isso, claro, caso um dia decidíssemos ficarmos juntos.

Agora, eu que peço para que o senhor feche os olhos e pense. Disse todas aquelas coisas sem refletir. Não tenho dúvidas quanto a isso. Enche-me de mentiras para provar o seu amor por mim. Pois, digo-te, nada me vale essas tuas promessas, saberei sobre a veracidade delas apenas no dia que eu precisar que as execute para mim. Conhece, melhor do que eu, que a única maneira que eu tenho de ganhar tamanha liberdade como essa que me falou, para viajar cidades e tudo mais, será com um casório. Casar-se-á comigo? Pense bem. Esqueceria mesmo das coisas por mim? Pense.

Se fôssemos para longe da nossa antiga vida sem a permissão que nos é necessária, teríamos que nos esconder das consequências de nossos atos. Afinal, lembre-se, não bastaria se esquecer de tudo. Teríamos que nos lembrar, a todo instante, do nosso passado para que só assim pudéssemos fugir dele. Se compreende a tudo isso e se dá por satisfeito de viver nessas condições, talvez um dia fiquemos juntos. Por hora, não me prometa nada. Beagá ou tampouco o mundo. Também não faça nada. Ainda é cedo para que possa me prometer coisas que realmente deseja cumprir um dia. Pense.

Quanto ao dia da minha volta, eu realmente não saberia lhe falar. Mas se eu não levar em conta a exatidão, como me pediu, poderia dizer que dia 15 de Janeiro já estarei ai. Ou, para ser mais realista, dia 20 de Janeiro. Não é tanto tempo assim, não é? Hoje é dia 26, essa carta só chegará as tuas mãos depois do início do próximo ano, sei bem como ficam os correios nessa época. Quando lê a isso, será por volta do dia 2 ou 3. Vê? Não é tanto tempo. Fico feliz de não faltar tanto, e admito que não somente porque esse lugar me irrita, mas também porque desejo vê-lo.

Enxerga? Posso ser melosa com o senhor. Desejo vê-lo.

Sabe, queria lhe admitir algo, aproveitando desse meu ímpeto meloso. Sempre o quis, mas não conhecia o suficiente de seus pensamentos para saber como reagiria. Hoje, ainda desconheço boa parte, mas me sinto infinitamente mais segura em tentar lhe contar isso, pois agora consigo prever até um sorrisinho no teu rosto. Vejo o senhor se inclinando em sua cadeira, passando a mão na boca e rindo das palavras. Acho que fará isso, não sei, não consigo ver motivo para que fique zangado com essa bobagem que vou lhe contar.

Ai vai.

Percebo o senhor antes mesmo de vir à casa dos meus tios naquele dia. Via-o na biblioteca. Não somente lá, a primeira vez que lhe vi, por exemplo, fora em uma missa. Gosto do senhor desde dessa tal missa. Estava como eu, sem prestar atenção, trocando o peso com os pés, fazendo um trejeito com a boca vez por outra. Transparecia toda a sua inquietação e má vontade de estar ali. Eu não podia demonstrar meu ranço, pois minha tia trataria de me dar um beliscão e me olhar feio. Eu fingia estar bem e, enquanto te olhava, o senhor tão livre em seu estado, refletia minha raiva no senhor. Achei-o lindo. Sua barba, já disse que a amo, não é? Mas não é somente a ela que amei e que amo. Amei seu nariz, amei suas roupas, amei seu cabelo e amei suas manchinhas de sol. Sua pele é tão surrada e ao mesmo tempo tão bela. Tenho um impulso de apalpa-la, acaricia-la, querei-la bem. Espiava-o na biblioteca, entre os espaços das lombadas dos livros, colocando só meu olho, vendo-o ler tão atento a alguma coisa. Um dia, nem sei se se recorda, falou comigo sobre um livro de anos que eu estava folheando. Amei tua voz. Tão clara, com fundo rouco, calma e, em certas notas, meio debochada. Descobri teu nome, Gregório, e o amei também. Achava que teu olho era preto como o fundo do céu e me surpreendi ao notar que não, depositando um tiquinho de atenção vemos que ele é marrom, na luz chega a ficar tão claro que teu olhar muda por completo. Amei a isso também. Eu pensava, se um dia eu tivesse a sorte de ter tido um pai, queria que ele fosse exatamente como esse homem. Igualzinho ao senhor.

O que quero lhe dizer é que sempre o percebi. Notava-o antes mesmo da forma súbita como passou a me notar. Quando, então, percebeu-me, passei a aprecia-lo ainda mais.

Gostei principalmente do teu olhar, cada detalhe. A cor mais clara que ele adquire aos olhos mais atentos, como um presente àqueles que depositaram fé e atenção neles. A ruga nº2 e a nº3 que ganham mais profundidade quando ri. O mistério que reside no par. Eles são a verdadeira incógnita entre nós. Sempre tento ler o senhor, sigo o obvio e começo pelo olhar, como qualquer um faz ao tentar buscar respostas no outro. Acontece que eu falho em tentar o comum. Teu olhar é a coisa mais intrigante e sem resposta que há nesse mundinho. O que são os segredos do universo e os questionamentos da ciência se comparado a eles? Para ter ideia, se eu tentasse ler o senhor unicamente pelo olhar, estaria sempre a me falar a mesma coisa. Não se entrega em uma olhada, tampouco eu conseguiria sucesso em decifra-lo unicamente por outros métodos. Tento recorrer a uma mínima entonação diferente na voz e até a milésimos de segundos a mais na baixada de cabeça que dá de vez em quando. Vou catando esses sinaizinhos, em busca de um significado maior. Porém, aprendi que nenhuma dessas coisas, quando vistas de forma isolada, diz alguma coisa para mim. Separadas elas não possuem informação relevante. Se juntas, no entanto, formam um texto coeso pelo qual eu consigo, em parte, lê-lo. Um ângulo diferente no olhar combinado a uma acentuação de uma ruga rara e particular em sua testa. És, então, uma combinação de fatores, não tão simples para eu isolar em um único olhar. Sendo de uma leitura difícil para mim, nunca sei com certeza o que lhe dizer. Tudo que falo tem um fundo cauteloso, pisando em ovos, certa que posso estar prestes a sabotar-me, que errei na leitura. O senhor, no entanto, parece totalmente alheio a essa sua capacidade.

Não sei por que sempre tive vontade de lhe contar isso. Acho que porque costumo apreciar admitir vergonhas às pessoas. Quando eu era criança, por exemplo, com uns 5 anos, tinha acabado de ir morar em Ouro Branco e conheci um garoto que tinha 10, achava-me uma pirralha, óbvio. Lourinho, magrinho, fazia minha felicidade. Fui crescendo e continuei a gostar dele. Quando fiz 12 anos, descobri que ele estava para se mudar para o Rio. Escrevi-lhe uma carta anônima, confessando que alguém lhe amava e ainda anexei uma música junto, que copiei a mão, ela era em francês e sei lá do que ela falava, mas devia ser sobre amor. Afinal, escuta-la me remetia a ele, de que outra coisa poderia cantar senão sobre o amor? Bem, assim foi. Até hoje não sei o tal destino da carta. Há um certo arrependimento de minha parte por ter feito isso, mas é terno e me faz sorrir de felicidade. Começo a me afeiçoar por alguém, sonho tanto com nossas conversas, saberia recitar seu cheiro de cor, sinto-me intima e na loucura pergunto-me "por que não confessar?". Há sempre essa inquietação falando, por que não? Por que não? Vá, conte ao Gregório que o conhecia antes mesmo dele te conhecer. Diga a ele o quanto ama seu olhar, sua barba e outras coisinhas a mais. Confessar essas bobagens tão constrangedoras faz parte de quem eu sou, por isso, permita-me.

E não se preocupe, não me importa mais o menino lá.

Da tua Mel.

Beijos. 

AquáriosWhere stories live. Discover now