25 de Janeiro de 1951

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Quinta-feira, 25 de Janeiro

Tudo mudou. Em questão de horas, a vida que aqui narrei por esses meses fora desfeita. Escrevo isso muito longe de onde costumo narrar minhas coisas, distante do meu escritório, afastado de Vila Doracy em demasia. Os sons, os cheiros, os toques, todos os meus sentidos capitam coisas inusitadas. Mas, senhores, tenham calma! Peço-lhes paciência às minhas histórias. Jogar aonde agora me encontro e ir embora não funcionará. Não fará sentindo aos senhores e tampouco a mim. Nem eu, que estou aqui e vejo a tudo isso, acreditaria no que digo. Há uma história súbita, digna de ser narrada. Adianto, senhores, que estou feliz! Satisfeito como nunca antes me viram. Sabem as poucas felicidades que aqui colecionei? Pois bem, juntas elas não são a minha de agora!

Mas vamos lá... Precisamos ir lá!

Após algumas dezenas de horas de choro e o desespero, há a calmaria. Assim foi comigo. Debilitado, aos poucos a sanidade voltava até mim. Já não considerava de todo impossível ter a minha Melinda. Calculava quantas vezes na semana conseguiria ir vê-la naquele fim de mundo, em meu carro, sozinho. Talvez, pensava eu, fosse até melhor. Poderia vê-la em segredo, voltar em silêncio. Manteríamos essas rotina por um tempo, até que enfim ela completasse uma idade que a desse mais independência para bater o pé e fazer de mim seu homem. Até lá, eu trataria de amenizar a nossa distância e conquista-la a ponto dela querer mesmo me ter como seu homem. Que fizessem de mim a nova fofoca da cidade! Sim, sou eu o homem que sai três vezes por semana em busca de uma menininha! Deixarei que pensem isso. No fim, era eu que a teria, seria a mim que ela faria feliz, não outro daquela cidade medíocre. Senhores, nesses causos, as coisas não tem importância. É só.

Há cerca de um dia, era madrugada. Um chuvisco fraco batia na janela, eu fazia anotações sobre Melinda (faço muitas longe desse caderninho), iluminado só por um abajur. Em meu escritório, silêncio total. Tudo percorria seu trajeto como sempre, fiel à rotina e a pontualidade. Nem eu, nem o divã, nem as folhas esperavam por algo que nos tirasse da comodidade da madrugada. Havia meu sofrimento maior, claro. Mas quando que eu não sofria? Toda madrugada era assim, sofrendo, suportando. Ontem, um sofrer mais amargo — Melinda iria embora e eu ficaria aqui. Mas eu tinha minhas esperanças cegas, elas faziam planos para que eu pegasse meu carro e fosse tê-la dia sim e dia não naquela cidade distante. Soava-me como um plano perfeito, como sempre o desespero me faz achar que minhas ideias absurdas são. Os senhores já devem ter percebido que eu me agarro demais às ilusões. Estão certos!

Perdido nelas, eu as escrevia em ritmo frenético no papel. Até que... O portão. Oh! Aquele mesmo companheiro que há tempos não cito aqui. Ele rangeu, anunciando, claro, que alguém havia entrado em nosso jardim frontal. Aquela fora a interrupção da madrugada, que prometia ser tão quieta e rotineira. No mesmo instante parei a mão e larguei a caneta, amuado pelo ranger ter-me feito perder as ideias que estavam tão lúcidas. Esperei alguns segundos por uma batida na porta ou uma tocada na companhia, mas nada veio. Estranhei, sobretudo pela hora que aquele portão arranjou de chiar daquela forma. Havia alguém ali, um ladrão, talvez? Levantei-me e fui espiar pela janela, onde nem mesmo o vidro embasado pela chuva impediu que eu visse minha menina parada em meu pátio. Ignorando a chuva que desabava de forma sutil sobre ela, Melinda encarava com ar questionador à porta, indo e vindo, sem saber o que fazer. Num instante, deu um passo mais a frente e chegou a levantar o braço, desistindo. Avancei pela casa, descendo as escadas e correndo até o térreo. Nem o rangido e tampouco a menina havia sido ilusão minha. Abri a porta e a vi já na saída para ir embora, com ar de desistência.

— Mel! — sussurrei, temendo que minha voz a espantasse.

Não sabia por que ela estava ali, nem queria saber. Tomei-a para mim, abraçando-a pela saudade que senti durante os dias suportados e não querendo mais larga-la, pois sabia que os próximos dias da vida também seriam sem ela e aquele abraço.

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