24 de Outubro de 1950

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Terça-feira, 24 de Outubro

m mês se passou sem que eu escrevesse por aqui. Um mês, senhores! Passei três meses escrevendo com tamanha constância que não imaginei que fosse parar de forma tão abrupta, por tão longo tempo. Mas não se enganem, não abandonei esse caderno por completo. Muito pelo contrário! Das mais de trinta noites que passei sem colocar tinta nessas folhas, em mais de vinte delas eu tomei o caderninho em minha mão, abri-o, reli-o.... Quantas besteiras pus aqui, foi minha conclusão. Justamente por conta dessas releituras que resolvi me isentar da escrita. Por vergonha? Pasmem, não! Abandonei a escrita, caros, porque a maioria de meus relatos giravam em torno de um único acontecimento: Melinda. Sou de momentos, se me empolgo com algo, toda a minha dedicação se debruça sobre a tal coisa. Se tivesse eu começado um diário enquanto eu pretendia desarmar Teresa, as páginas teriam sido somente sobre ela. Assim sendo, com esses escritos virando quase que um relatório completo do que se passava entre mim e Melinda, não poderia escrever senão sobre outra coisa. E eis que nesse último mês não troquei uma única palavra com a menina! Achei incoerente de minha parte começar a contar, do nada, da forma como se conta em um diário qualquer, os pormenores do cotidiano, sem que houvesse aparição alguma da garota que serviu de base para as últimas páginas que aqui criei.

As primeiras folhas desses escritos bem que foram assim, sem rastro algum de Melinda. No entanto, o restante dos relatos quase que excluem por completo outros acontecimentos, focando unicamente em Melinda. E outra, os eventos sem ela aqui descritos são tão insignificantes! Tomei nota, por exemplo, da ida do meu filho para outra cidade. Fato inútil! Vejam bem, não queria eu chegar aqui e narrar sobre coisas de tal insignificância, por isso tornei-me ausente. Se ao menos houvesse Melinda... Mas não, nadinha! Não houve sequer convite por parte do Sr. Dorneles, muito menos eu me atrevi a ir até aquela casa. Desisti até de vigia-la em suas idas e voltas da escola. Estava tão desanimado com tudo! Continuei arcando, claro, seus estudos. Mas só! Apenas era esse laço burocrático e puramente formal que ligava aquela menina a mim. Não vi sequer razão em narrar nessas folhas minha esperança vã de que algo acontecesse. Estava dizendo um dane-se a tudo! Minha vida é sem graça mesmo, por que fingir que há algo acontecendo? Ou pior! Por que narrar meus planos e expectativas típicas de um fracassado? Poderia eu contar esses fracassos, porém tinha chegado a tal estado de lassidão e miséria que nem para isso eu estava disposto a servir. Calei-me, então.

Porém, claro, mesmo que eu já não narrasse sobre minhas esperanças ridículas, isso não eximia suas existências. Continuavam elas habitando e coexistindo em meu coração, comigo sempre avistando-as antes do sono e nas horas de tédio. E como agradeço por elas não terem me deixado por completo! Pois foram elas que me levaram até a noite de hoje. Mas o que se passou, então? Bem, hoje faz quarenta e alguns anos que Vila Doracy perdeu o status de vila e ascendeu como cidade. Até aí, nada de grande coisa. Feriado típico, pessoas na completa calmaria diurna, mas de noite há a festa, claro. Em frente a matriz, com suas barraquinhas e brinquedos rotatórios, uma réplica do que encontramos em julho durante a festa da padroeira. Pois bem, Teresa já estava para sair com o infeliz mais novo quando anunciei que eu iria junto. Ela se surpreendeu, é claro, já que eu nunca me dou ao trabalho de frequentar tais eventos. Não tem doença, hoje? Ela provocou. A verdade é que até eu estava meio surpreendido com a minha ida. Porém, meu ato extraordinário foi motivado, claro, pelas tais esperanças cegas! Não pensem que esse tenha sido meu primeiro ato instigado meramente pelas minhas expectativas.

Durante o último mês, por exemplo, fui até à biblioteca de Ouro Branco mais vezes que o normal, sempre pensando que encontraria Melinda em alguma das mesas. Fui infeliz em todas as tentativas. Amaldiçoei-me pelas tantas vezes que, no passado, a encontrei ali — antes da sua infeliz mãe morrer e antes de conhece-la — grudada em seus livrinhos, e eu não dei a mínima. Ignorava, passava batido, apenas tinha comigo Lá está a menina filha da infeliz! Seria ela minha sobrinha ou minha filha? Nenhum dos dois! Afirmava para que minha consciência se tornasse carregável. Dava-me conta, em toda ida que no presente fazia com esperança de vê-la, dessas vezes que a vi na biblioteca e não me importei. Daí, voltava para casa todo amuado, resmungando Tantas foram as vezes que a vi ali! Agora ela não aparece, somente porque agora é isso que desejo! Que azar é esse em toda a minha vida? Mas as expectativas vis me levavam de volta à biblioteca no dia seguinte. Gastava tempo também na praça, esperando que a qualquer instante a menina saísse da casa cinza e fosse fazer sei lá o que pelas mesmas bandas onde eu me encontrava. Daria ela, a mim, um sorriso? Quem sabe um aceno? Seria eu feliz com tão pouco! Só saberia se eu continuasse ali, sentando, esperando-a. Mas, claro, só tive dela as saídas que ela fazia para descer a rua, às vezes com seu batom vermelho, naquela tradição que eu tanto gostava! Era a única coisa que eu ganhava pela espera. Vinha a noitinha e eu encarava o caderninho, abria-o, relia os mesmos trechos que havia lido na noite anterior, para, no fim de tudo, perguntar-me Para que escrever algo? O que falaria, então? Que fui até a biblioteca na tentativa de causar um encontro espontâneo entre mim e Melinda? Que esperei a tarde toda na praça, achando que Melinda pudesse passar por lá? Se eu tivesse ousado escrever sobre tudo isso, os dias se passariam quase que idênticos. Poderia eu escrever dois relatos, um sobre a biblioteca e outro sobre a praça, e depois fazer dezenas de cópias, acrescentando somente dias diferentes a cada um. Pronto, voilà, eis como se passou o meu último mês! Narrações que teriam como fim unicamente o meu fracasso.

AquáriosWhere stories live. Discover now