Capítulo 30: o ápice da felicidade - Parte 1 de 2

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O ápice da felicidade emerge na incerteza. É retirar o pé de uma mina terrestre e não voar pelos ares, apostar no azarão e levar a maior bolada; é arriscar, contra todas as possibilidades, e vencer... é correr por uma densa floresta no meio do nada, sem saber onde está, gritando para ninguém, temendo a morte (seja lá o que isso fosse), temendo nunca mais ver a mamãe e o papai ou o Nico, e ser ouvida; resgatada. Esse é o ápice da felicidade. Alguém estava lá. Alguém a ouviu, mesmo quando tudo apontava para um fim no qual isso não acontecia.

A menininha chorava. Os homens se aproximavam, lembrando-se de sua foto nos jornais e de sua mãe desesperada. Não sabiam o que dizer; o que fazer. Apenas se aproximavam, correndo primeiramente e depois diminuindo o passo, com medo de assustá-la, como se ela fosse um animalzinho raro. De repente, não havia mais surras, nem mão mutilada, nem mais mortes; não havia dezenas de corpos lançados ao chão em torno do grupo de homens, agora bem próximos da menininha que chorava. Não... havia apenas aquela pequena criatura. Havia esperança.

Uma rara gota de esperança brilhando em meio à chuva de sangue que caía sobre Nessuno.

O detetive Fontes, antes de se aproximar a um braço de distância da menina, desviou o olho para Silas. Podia ler seus pensamentos. Sei, eu sei. O que está acontecendo aqui? Deus...

Menina... – Fontes esticou o braço.

Ela começou a gritar e tentou correr para o outro lado, mas o detetive a segurou. O contato com o homem estranho, devido ao medo que acobertava a menina, fora recebido como uma agressão. Seus gritos aumentaram.

SOCORRO! – e o choro ganhava volume.

Ei... ei... ei... – Fontes abraçou a menininha. – Calma... calma... tá tudo bem... – dizia pra ela, mas também para si mesmo. Está tudo bem.

Silas olhou para os outros colegas, que retribuíram o olhar, voltando-se então para Fontes e a criança aninhada em seus braços, chorando, em choque, mas viva... ali.

Está tudo bem.

Fontes se ajoelhou, olhando para o campo aberto. Não poderia deixar a criança ver aquele pedaço de inferno. Não podia ver a chacina que a rodeava. Com muito cuidado, colocou as mãos na face dela, fazendo-a olhar apenas para seu rosto. E por um momento ela parou de chorar, olhando-o nos olhos, buscando neles a certeza de que ficaria bem.

O que houve, meu bem? – Fontes perguntou.

– O... o... o mônstu pegô o Nico... – e ameaçou voltar a chorar.

Fontes tentou manter a calma, mas tremia. Monstro? Os homens ficaram agitados, esfregando as mãos nos lábios, rostos e têmporas.

(Monstro?)

– Monstro, minha querida?

– Do ôtu lado da floresta – ela apontou para trás. Tentou olhar, mas o detetive segurou seu rosto.

A pele da criança começou a ficar fria.

– Você viu outras crianças?

Sim... elas... – e seus olhos começaram a se fechar. – Elas...

Por favor, você... – mas podia ver a menina perder as forças, desabando em seus braços.

Os outros homens se aproximaram, resmungando.

Fogo... – ela disse por fim. E desmaiou.

Fogo?

Fontes segurou a menina nos braços, levantando-se. Tornou a olhar ao seu redor.

Ela está...? – Silas perguntou.

– Ela apenas desmaiou... está em choque, pobrezinha.

Fogo... era o único detalhe que faltava para aquele lugar se tornar o inferno.

Não mais.

– Vocês. – Fontes esticou a cabeça para os quatro policiais que estavam próximos. Os dois PMs ele não conhecia por nome, mas João e Arquimedes, policiais civis, um fotógrafo e outro escrivão, estavam sempre na delegacia. – Levem essa menina para a cidade, coloquem ela em um hospital e procurem seus pais.

– Você tem certeza, Zé? – Arquimedes perguntou.

– Eu fico com vocês – um dos PMs disse.

– Não. Vão todos, assim podem cobrir maior espaço em menor tempo. Avisem o delegado Sebastião. A polícia e os militares também... a porra toda. Vamos varrer essa floresta abaixo.

Eles assentiram, tomando a criança nos braços.

– Já voltamos. Não façam nada imprudente. Olhem só como que já tá isso aqui.

Fontes assentiu.

– E nós? – Silas perguntou.

O amigo olhou sobre ele. Os policiais se afastavam, buscando não pisar em nenhum dos corpos.

– Você já viu algum monstro, Silas?

– Não desse tipo, Zé.

– Pois agora teremos que caçar um. – Puxou sua .38, voltando-se para a mata.

– A gente não devia esperar os outros voltarem com a porra do exército e até o Geisel pra cuidarmos disso?

Fontes parou.

– Essa honra tem que ser nossa, Silas. É o único jeito de a gente continuar vivo... nos tornarmos alguma forma de anti-herói nessa cidade.

– E essas pessoas, Zé? – perguntou, referindo-se aos corpos que começavam a deixar para trás.

– Elas não vão a lugar nenhum...

– É bom mesmo. – Silas comentou, fazendo o sinal da cruz.

Até onde sabiam, a boca do inferno e o próprio Diabo os aguardavam.

O suor escorria frio por suas testas e, embora nenhum deles admitisse, enquanto adentravam a mata, sentiam medo.

Um Perverso Tom de VinhoWhere stories live. Discover now