Capítulo 20: agradeça a Deus pelos canivetes suíços - Parte 1 de 1

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Rita abraçou Nícolas com mais força quando sentiu os passos estalando a madeira no cômodo ao lado; o monstro estava chegando.

A fome e o medo já eram intrínsecos às crianças. Elas se sentiam tão famintas que comeriam mesmo sentindo o cheiro adocicado... mesmo achando que a carne poderia ser...

Deus! Que não seja! Não isso! Por favor!

A porta se abriu.

– Trouxe um novo amiguinho pra vocês, crianças. – Carregava nos braços um

(estoque)

menino magro e baixo, como alguns que ali estavam.

Os pequenos se encolheram, temendo serem levados para o fogo.

Genésio entrou no quarto, caminhando até a parede, onde prenderia o menino em uma das grossas cordas presas às argolas de aço nas quais seu papai prendia os cachorros – mas isso foi há muito, muito tempo; ele ainda vai voltar para termos mais cachorros caçadores, vai sim. O monstro tropeçou em um rato, tombando o menino em seus braços. No movimento, um objeto fora atirado do bolso do moleque para o lado, caindo próximo de Nícolas, que o pegou com agilidade. Genésio ignorou o animal, chutando-o e, por fim, amarrou a criança, que começava a acordar – não de um pesadelo, mas para um pesadelo – pelos tornozelos. Ele pegou as vasilhas no chão e saiu por um momento, voltando com água e lançando alguns biscoitos que comprara com seus poucos cruzeiros que ele guardara antes de sua insanidade o consumi-lo. Não seria hoje que os pequenos morreriam de fome. Estes se esticaram ao máximo, apertando ainda mais seus tornozelos contra a corda, e, como cães de rua famintos, atacaram a comida e bebericaram a água.

A porta voltou a se fechar. Talvez não houvesse fogo aquela noite.

O único que não avançou em direção à comida foi Nícolas. Apalpava o novo e estranho objeto que caíra aos seus pés. Um canivete suíço, ele sabia. Sabia, pois seus pais – principalmente sua mãe; não, meu filho, isso não é brincadeira pra criança – nunca o deixaram ter um em sua vida. Eram raros os meninos que possuíam um daqueles; todos na escola pediam para vê-lo e brincar com ele, e se você fosse apanhado com um desses... era bom você gostar de tomar pauladas na palma da mão. Contudo, às vezes, as estatísticas trabalham em prol dos oprimidos. Não muitas vezes, é verdade, mas Nícolas louvou os pais – ou o tio, não são sempre os tios? – que acharam uma boa ideia dar um canivete suíço para um menino de nove, dez anos.

(Obrigado.)

Voltando engatinhando, com um pedaço de biscoito de polvilho na mão, Rita perguntou:

O que cê tá fazeno, Nico? Tó – disse, oferecendo-lhe seu pedacinho de biscoito, ainda que continuasse faminta.

– Pode ficar, Rita – ele respondeu, sorrindo e passando a mão em seus cabelos, agora já muito oleosos.

Com a outra mão ele amolava o canivete no chão. Passara-o em seus dedos, não havia corte. Não se pode ter tanta sorte não é mesmo?

Eu vou te tirar daqui... – ele sussurrou.

Rita o abraçou, chorando.

– Eu te amo, Nico. Te amo muitão.

Ele também a amava.

Nícolas continuou a amolar a lâmina no chão. Imaginava-se enfiando o canivete em ambos os olhos do monstro; sorria com tal ideia. Que pensamento deleitoso!

Ele só queria sua vida de volta. Só isso. A infância e a inocência ele já havia perdido.


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