Prólogo: sacrifício em holocausto - Parte 2 de 8

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Mundinho; um pequeno vilarejo português na Holanda. 1945.

Meses antes do fim da guerra, um dos seus mais dramáticos – e menos conhecidos – episódios se desencadeou sobre os Países Baixos. Nomearam-no Hongerwinter, o "inverno da fome".

A calamidade se instalou no final do confronto. Após o desembarque dos Aliados nas praias da Normandia, o exército alemão se reagrupou no oeste do país, cortando os suprimentos da população civil. Como consequência, os habitantes dessa região, incluindo os pobres portugueses que viviam em Mundinho, só podiam consumir o que conseguissem extrair da terra. A situação foi agravada pelas condições climáticas do ano: o inverno fora longo e rigoroso. A esperança que persistia sucumbiu com os diques holandeses, dinamitados pelo exército nazista, a fim de evitar que o território fosse utilizado pelos Aliados como corredor para invadir a Alemanha. Boa parte das terras férteis fora inundada.

E em meio ao inverno sem precedentes erguia-se, vestida de preto, a carestia.

Mais de vinte mil pessoas morreram em decorrência da fome. Mas a morte não era o pior. A loucura, o delírio e o desvario afloravam no cerne das pessoas. O povo de Mundinho via com desespero sua miséria ascender; como definhavam, esfomeados, arrancando brotos das poucas árvores que restavam para comer. Ouvia-se, e com uma frequência assustadora, falar em canibalismo. Ouvia-se na falta de palavras das pessoas, em como olhavam umas para as outras. A vontade estava lá. O desejo salivava em suas bocas à medida que seus estômagos eram corroídos pelo suco gástrico.

Madalena estava grávida de nove meses e, excetuando-se a barriga, estava tão magra que era possível ver o desenho de seus ossos. Antônio, seu marido, carregava a triste certeza de que seu filho ou filha não sobreviveria. A mulher chorava em seu ombro dia após dia e o silêncio tomava a maior parte da pequena casa. Sentiam-se condenados e abandonados. Questionavam, junto aos outros, a existência e a justiça do Deus Bíblico. Que tipo de Deus permitiria que seus filhos

(desejassem comer a carne do outro)

passassem fome? Morressem de fome? Esse era o Deus para o qual rezavam todo dia? O Deus surdo-mudo que não ouvia e nem respondia nenhuma prece? O Padre Pedro insistia que permanecessem fiéis a Deus, que seguissem Sua palavra e aceitassem seus destinos, pois Ele os amava; eles apenas não compreendiam o mistério da fé.

O discurso permaneceu até o dia em que o padre não se encontrava mais na pequena capela. Em seu lugar estava outro homem. Trajava a mesma roupa negra que o Padre Pedro, mas pregava outra palavra. Sugeria outros meios. Ele, apesar dos outros nunca terem descoberto, havia matado o seu antecessor, golpeando-lhe a cabeça com um pé-de-cabra enquanto dormia (o velho padre nunca trancava a porta da casa; acreditava na bondade daqueles que o rodeavam), e devorado sua carne, sugando até o tutano de seus ossos. Chamava-se Genésio e era descendente dos amonitas, uma etnia de Canaã, presente na península arábica e na região do Oriente Médio.

O povo de Mundinho não se importou com quem ele era ou quais os meios usados para chegar ali. Nem mesmo com o sumiço do Padre Pedro. O que importava era o que Genésio prometia. Ouviam-no, com as mãos sobre o coração, dizer que o verdadeiro deus os estava punindo, que não eram dignos de sua misericórdia, que morreriam e queimariam no inferno eterno. As mulheres choravam e os homens permaneciam em silêncio. Genésio continuava seu discurso. Já não havia espaço vazio na pequena capela.

– Há uma forma de se redimir, contudo... – Genésio disse, causando um burburinho no local. As pessoas queriam se redimir. Fariam qualquer coisa. Estavam desesperadas. Estavam famintas.

– Como? – veio uma voz fraca do fundo.

– O que podemos fazer?

Sentados lado a lado, Antônio e Madalena apertavam as mãos um do outro. A pequena criança movia-se na barriga da mulher, onde a dor começava a aumentar.

– Moloque – Genésio disse. – Este é seu verdadeiro nome. O nome de deus.

O murmúrio tornou-se mais alto.

– Ele deseja que paguemos pelos nossos pecados. Deseja que nos sacrifiquemos por tê-lo esquecido. Tê-lo abandonado. – O ar tornou-se mais frio. As pessoas se calaram para prestarem atenção ao homem que jurava trazer a verdade. – Vocês estão dispostos a conceder-lhe seus sacrifícios?

A quase centena de moradores de Mundinho começou a balbuciar

– Sim... – uma voz tímida no fundo.

– Sim! – outra.

– ESTÃO DISPOSTOS A SE SACRIFICAR POR MOLOQUE, O VERDADEIRO? – Genésio gritou, levantando os braços, inflamado pela fé que tomava a plateia.

– SIM! – a resposta chegou em uníssono.

Qualquer sacrifício seria melhor que a dor do estômago vazio há dias. Mesmo na capela, naquela situação ímpar, as pessoas desviavam-se dos olhares canibais umas das outras. Podiam sentir a fome por detrás dos olhos.

– SEJAM BEM-VINDOS A GEENA, ENTÃO, MEUS AMIGOS! SEJAM BEM-VINDOS AO TEMPLO DA SALVAÇÃO.

– AMÉM! – todos louvaram em resposta, selando um pacto com o próprio Diabo.

Madalena contorcia o rosto, levando a mão ao ventre. Antônio olhou assustado para ela, que segurou o grito. A dor se ampliava. No meio de suas pernas, um líquido escorreu. Em meio ao fervor religioso e à ascensão de um novo deus, uma nova vida se aproximava deste mundo.

– AMÉM! AMÉM, SENHOR MOLOQUE! ALELUIA, GEENA!

– AMÉM! ALELUIA!


Um Perverso Tom de VinhoWhere stories live. Discover now