- Entendo seus sentimentos. - Barbara disse deixando refletir um semblante triste em seu rosto.

- E você? De quem sente falta? – Dei uma breve pausa e prossegui. – Quem te faz olhar perdidamente o horizonte?

- Hoje, mais ninguém. Mas já teve uma pessoa.

- Antes ou depois?

- Conheci ela antes, a perdi depois.

- Ela? – Não pude deixar de me surpreender com aquilo e mesmo sem querer acabei deixando a pergunta sair da minha boca. – Legal. – Falei com um sorriso desconcertado tentando quebrar o clima inconveniente da pergunta.

Barbara sorriu e deu de ombros.

- Sim. Maria.

- Gosto desse nome. – Respondi ainda sem jeito.

- Eu também. E não só do nome, gostava de tudo nela.

- Como a conheceu?

- No trabalho. Ela era estagiária na emissora em que eu trabalhava. Nos vimos num corredor uma vez, depois em uma gravação, num happy hour e quando eu percebi estávamos completando 3 anos juntas, realizando nossos planos, nossos sonhos... – Barbara deu uma pequena pausa para engolir a seco e desatar o nó da garganta. – Tínhamos acabado de comprar um apartamento em Curitiba e iríamos morar lá.

- De recife para Curitiba é uma viagem e tanto.

- Ah, não. Eu não sou daqui.

- Não?

- Não. É por isso que eu não sabia bem qual caminho seguir até o porto. Eu e ela somos do Rio de Janeiro. Eu vim pra cá fazer uma matéria sobre o desmatamento e a desertificação da caatinga nordestina e ajudar uma equipe local numa reportagem denúncia sobre o uso indevido e poluição nas águas da transposição do rio São Francisco. Estava isolada de tudo no interior e quando voltei pra capital fui pega de surpresa pelo inicio dessa maluquice.

- Você não conseguiu falar com ela?

- Consegui, foi a primeira coisa que fiz quando o celular pegou sinal. Mas foi difícil manter uma ligação de mais de dois minutos com as linhas congestionadas.

- É. Eu lembro como foi.

- Pois é. Ela já deveria estar em Curitiba quando o país parou, mas ela tinha medo de ir só e não conseguir se virar bem na cidade nova. Além de que, ela esperava que entrássemos pela primeira vez no apartamento juntas. Disse que uma vez entrando juntas, jamais partiríamos separadas. Uma superstição boba. – Barbara deu um leve soco na esquadria de madeira da janela. – Ela não deveria ter esperado por mim naquela droga de cidade.

Notei a raiva que Barbara demonstrara mesmo que involuntariamente. Realizei que ela se sentia em partes culpada pelo que deve ter acontecido a Maria, mesmo não sendo nem de longe sua culpa. Encostei a mão em seu ombro tentando consolá-la e ela assentiu com a cabeça depois de enxugar uma lagrima que rolava por sua bochecha.

- Eu tentei pegar um vôo para o Rio mas todos haviam sido cancelados. Voltei pro Hotel onde eu consegui sinal e liguei para ela, foi a última vez que nos falamos. Ela ainda estava no Rio, disse que estava no aeroporto prestes a embarcar num vôo para Curitiba e que aquele seria um dos últimos a sair de lá antes que lacrassem a cidade de vez. E eu até hoje nem sequer sei se ela saiu.

Barbara mais uma vez pausou a fala por uns instantes e eu permaneci calado, apenas olhando para ela e deixando com que ela falasse tudo que precisava dizer.

- Era quase noite quando falei com ela e faltava luz na cidade. Era impossível sair naquelas condições, os ônibus não estavam rodando, não havia taxis e eu não estava com carro. Esperei a energia voltar, e isso só aconteceu ao amanhecer. Fui pro aeroporto logo cedo e tentei embarcar num vôo para Curitiba, mas me informaram que só teria um avião indo para lá no outro dia. Dormi no aeroporto para evitar qualquer chance de perder aquele vôo só que antes de amanhecer o local foi tomado por homens do exército e eles instalaram uma quarentena, isolando o local e cancelando todos os vôos.

Um barulho no andar de baixo roubou nossa atenção por um momento e fez Barbara interromper sua fala. Logo depois ouvimos a voz de Natalia e Edinho e presumimos que fossem eles, demos de ombro.

- Eu me juntei com um grupo de mais unas seis pessoas enquanto esperava no aeroporto. – Barbara continuou. – Depois que os militares ocuparam o local algumas pessoas que estavam à espera de seus vôos começaram a discutir e criar uma algazarra. E a cada hora que passava a quantidade de pessoas lá só aumentava. Muita gente chegava ainda tentando ir embora, algumas pedindo informações, isso aliado a um processo lento na quarentena e os esporádicos aviões que ainda pousavam e desembarcavam mais pessoas lá foi criando um caos. Não tinha mais condições de continuar lá, então eu e essas seis pessoas demos o fora.

- Foi aí que você conheceu Natalia, Clayton e o outro cara?

- Não, dos que você conheceu apenas Clayton estava comigo até o momento.

- Ah, certo. Me desculpa por te interromper, continua.

- Nós tentamos sair da cidade de carro mas todas as estradas que levavam para fora da cidade estavam intransitáveis por causa do congestionamentos quilométricos gerados pela quantidade imensa de carros e das barreiras militares que dificultavam a passagem. Passamos quatro dias tentando com o carro, até que ouvimos a chamada do navio pelo rádio, a mesma chamada que você ouviu, eu imagino.

- Sim. Coronel Josenir Viana.

- É. Pensamos ser nossa melhor chance e fomos para lá. O lugar estava tão perto de explodir quanto o aeroporto, mas um dos homens que estavam conosco era um grande empresário da região e exigiu uns favores até conseguir embarcar todos nós. Mesmo furando fila precisávamos passar por testes na quarentena e isso levava cerca de quatro a cinco horas, nesse meio tempo foi quando tudo deu errado. Algumas pessoas infectadas que estavam no meio da multidão se transformaram, houve correria, gritos, tiros... Só conseguimos sair de lá por causa do Adônis, ele era um funcionário do porto e nos ajudou a fugir em troca do abrigo ofertado por Charles.

- O apartamento que vocês estavam?

- Sim. Aquele apartamento era de Charles, o empresário que eu falei. Quer dizer, na verdade o prédio era dele. E como havia pouco tempo que tinha sido inaugurado ainda tinham alguns apartamentos desocupados, foi o local perfeito.

- Você passou a viver naquele apartamento a partir daí?

- Mias ou menos. Na verdade uma semana depois de chegarmos lá eu peguei um carro e tentei sair da cidade só que não conseguir ir muito longe. As coisas deram errado e eu quase fui morta, foi nesse momento que eu conheci Natalia, ela me salvou. A partir de então nos ajudamos e voltamos juntas ao apartamento. Muito já tinha mudado lá quando voltamos, algumas pessoas novas tinham aparecido, outras partiram e assim foi até vocês aparecerem..

- Quer dizer que vocês sobreviveram por oito meses e nós bagunçamos tudo em menos de uma semana? – Falei irônico.

- Aquele lugar já estava muito bagunçado havia tempos, talvez tenha sido você e seu tio que botaram ordem.

- Gosto da forma positiva de como você enxergar as coisas. – Disse tentando aliviar o clima da conversa.

- E eu gosto do seu sendo de humor. – Ela sorriu. - Vamos lá embaixo ver o que seu tio e Natalia estão aprontando. – Barbara disse enxugando as últimas lágrimas do rosto e se desencostando da janela.

- Vamos. – Falei seguindo na frente.

- E Jotah, me desculpe por estragar seu momento com minhas besteiras.

- Você não estragou nada. Vamos.

Diário de Um SobreviventeWhere stories live. Discover now