02/04/2019

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O dia ontem foi bem inesperado e eu mal consegui dormir pensando em como aquela garota descobriu sobre os recados do meu irmão. A conversa com ela teve um tom ameaçador mas eu não a vejo querendo me prejudicar, pisei fora da linha muitas vezes em pouco tempo e foi ela que sempre esteve envolvida de alguma forma com isso.

Eu não sei o que me espera no refeitório pela manhã e na verdade estou com medo do que possa ser, mas não posso esperar meu irmão sofrer as conseqüências por isso. Não sei por que ela não relatou esses problemas aos outros no comando ou ao próprio Comandante e de todo jeito não quero descobrir isso da pior forma, se realmente forem atrás do meu irmão caso eu não compareça ao refeitório hoje não me perdoarei por isso.

- Por um momento pensei que não viria. – Rayssa, que estava encostada a parede externa do refeitório, disse a me ver chegar.

- Você sabe o motivo de eu estar aqui.

- Sei sim. Agora eu quero que você entre e fique em silêncio até eu mandar.

Ela me pôs a sua frente e me guiava em direção a entrada do refeitório com uma das mãos a altura da minha lombar enquanto olhava pros dois lados da rua pela última vez como se checasse que ninguém estivesse nos vendo ali.

Assim que chegamos à frente da porta de entrada lateral do refeitório Rayssa passou a mão sobre meu ombro e bateu algumas vezes na porta e após um breve momento alguém a abriu e entramos.

Assim que entrei, com Rayssa ainda me empurrando levemente pelas costas, todos que estavam ali olharam para mim, mas não eram muitos, cerca de apenas seis ou sete pessoas. Logo depois da porta ser fechada Rayssa se afastou de mim e se pôs alguns passos a minha frente.

- É ela. – Rayssa disse aos outros em referência a mim.

- A cachorrinha do Comandante. – Uma mulher que estava sentada mais ao fundo falou.

- Ouvi dizer que era uma de suas noivas, o que está fazendo aqui? – Um homem próximo a ela também se pronunciou.

- Devagar pessoal. – Rayssa disse tentando amenizar as coisas.

- Não sabia que você trazia infiltrados pro movimento. – Um segundo homem falou.

- Eu disse já chega! – Rayssa aumentou o tom de voz dessa vez.

Eu me senti acuada ali diante desses julgamentos e provocações, tinha vontade de retrucar e afrontá-los, mas sofro para conseguir liberar minha raiva, todos os meses que precisei me conter e forçar a repressão desses sentimentos de revolta e combate para amenizar os maus tratos que sofria pelas mãos do Comandante me castraram psicologicamente, mas não tinha hora melhor que essa para confrontar alguém.

- Vão se ferrar! Eu não vim aqui para ouvir xingamentos de um bando de idiotas como vocês! – Disse explodindo num surto de raiva que não me cometia há tempos.

Nenhum deles esperava aquela reação vinda de mim e pude notar isso nas suas expressões atônitas ao ouvirem minha resposta nem um pouco amigável.

- Ok... – O segundo homem que havia falado se pronunciou mais uma vez.

- É... Parece que ensinaram a cachorra a latir. – A mesma mulher que me xingou da primeira vez continuou.

- E por que você não para de falar e vem aqui ver o que a cachorra pode fazer? – Falei olhando fixamente pra ela.

- Ta bom. Vamos ver então. – Ela retrucou enquanto se preparava para vir em minha direção.

Mas antes que ela começasse a caminhar até mim Rayssa se intrometeu mais uma vez.

- Letícia – Disse olhando pra mulher com a qual me desentendi. – se você der mais um passo eu te jogo de volta no parquinho de diversão dos grupos de busca.

A mulher gelou e parou imediatamente, sua feição mudou automaticamente para uma face amedrontada com os lábios trêmulos e ela ficou ali até que Rayssa falasse novamente.

- Sente-se e me deixei dizer o que preciso.

Sem falar mais nada Letícia sentou-se de volta em seu lugar e todos ficaram em silêncio apenas esperando para ouvir o que Rayssa tinha a dizer.

- Izabel eu quero que você conheça seus colegas de sua nova função.

- Que função?

- Conspiradora.

- O quê?

- Você não quer derrubar o Comandante? Então é nos ajudando que você vai conseguir isto.

- Vocês? Tudo está muito confuso, como eu posso confiar nisso? Por que eu deveria confiar em vocês?

- Porque eu confio em você. Eu venho observando você e seus amigos desde que chegaram aqui e me certifiquei que continuassem vivos. Serão de grande valia para derrubarmos aquele desgraçado. Todos nós aqui sofremos como você e não podemos engolir e aceitar estas atrocidades apenas por receber um teto sobre nossas cabeças e um prato de comida. O Comandante vai cair e será por nossas mãos.

- Rayssa? Você tem certeza disso? Tá botando nossa vida em jogo. – Um rapaz que ainda não se pronunciara falou.

- Ela passou três meses com ele e nem ele nem ela estão mortos, podemos confiar às informações a alguém assim? – O primeiro homem que me xingou junto com Letícia voltou a falar.

- Eu passei três meses amarrada a uma maldita cama, trancada num quarto e sendo abusada por aquele monstro, acha que eu não o teria matado se tivesse a chance? Eu adoraria trocar de lugar com você durante aqueles três meses pra ver você tentar.

Ele engoliu a seco e permaneceu calado enquanto os demais olhavam para mim com um silêncio mórbido ocupando o recinto, após alguns instantes Rayssa tomou a frente novamente.

- Está bem. Chega por hoje. Voltem a suas funções de origem e fiquem atentos a novas chamadas para mais um encontro. – Após dizer isto em bom tom para todos ouvirem ela se voltou para mim e continuou num timbre mais discreto. – Você não fala sobre isso a ninguém está bem? Quando você sair daqui não vai falar sobre isto nem mesmo às pessoas que estavam aqui, ok?

- Tudo bem. Eu entendi, mas e meu irmão?

- Era um blefe. Nós não temos contatos com os grupos de busca, são o pessoal com os maiores privilégios aqui, é muito arriscado tentar convencê-los a atentar contra o Comandante.

- Meu irmão é confiável.

- Eu sei, mas os homens ao redor dele não são. A única forma disso que estamos fazendo aqui dar certo é se seu irmão não souber da existência desse grupo. Eu quero que me prometa que não dirá a ele sobre nós.

- Sabe que isso é muito...

- Prometa.

- Tudo bem. Eu prometo.

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