XXXII. As outras terras

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Era assustador demais contar quantas vezes quase morreu depois de conhecer Lorenzo. Mas, nada foi mais apavorante que fechar os olhos em um avião e acordar como uma prostituta ruiva em Atlanta. O odor de sexo e camisinhas estava por todos os cantos. Eram cômodos separados apenas com panos pendurados e o galpão cinza era tão frio quanto o lado de fora.

— Mary? — chamou.

Esse é seu nome, El repetiu a si mesma.

— Sim...— sussurrou, desacostumada com a própria voz.

— Que bom que você voltou — uma mulher negra apareceu atrás dela.

Seu estado era horrível. As olheiras fundas e o corpo magro, judiado pelas drogas. Usava apenas um short preto que Eloísa julgava curto demais e o sutiã rosa estava desbotado. Eloísa virou a cabeça de lado, confusa.

Eloísa esperou a outra sumir para procurar o telefone nos bolsos da saia rosa-bebê que usava, não encontrou nada, nem tinha bolsos. Passou a mão pelo seu pescoço e sentiu o colar com o pingente de coração, se perguntou o que estava acontecendo. Caminhou até o fim do corredor, em direção ao quarto de cortinas vermelhas guiada por outras mulheres ali. Sentia-se mal. O carpete marrom estava preto de tão sujo e os panos brancos estavam embolados sobre um colchão de casal. Um banco marrom ao lado da porta se via repleto de pinos de cocaína e agulhas usadas de heroína. Ela automaticamente olhou para as veias do próprio braço, como já tinha percebido, não tinha marca alguma. Estranhou.

Ela olhava as coisas ao redor, mas não ousou tocar nas cobertas.

Uma voz masculina chamou do outro lado dos panos vermelhos. Ela entrou em estado de choque pela situação. Reconhecia aquela voz.

— Pode entrar — falou ela com a voz falhando. O rapaz de estatura jovem e sorriso no rosto levantou a cortina. Suas pernas tremeram.

— Az? — Ela questionou sem pensar. Não sabia como o reconhecia e ao mesmo tempo nunca o tinha visto. — Azazel — concluiu.

Ela continuou imóvel. Olhou para os lados, se perguntava em qual ponto da história ela havia se perdido tanto para chegar até ali.

— Precisamos conversar, em outro lugar — falou.

Eloísa sentiu um medo que lhe arrepiou a espinha. Não se sentia bem na presença de Az ou sei lá quem era aquele cara. Era uma sensação de perigo eminente. Ele a chamou pelo nome mais uma vez e só então a mulher começou a segui-lo. Andar pela rua mostrando a barriga a deixava envergonhada, mesmo que não fosse seu corpo. O top verde deixava de fora parte dos seios. A saia rosa-bebê e de couro fazia suas pernas parecerem ainda mais finas e subiam conforme andava. As pessoas da rua se vestiam estranho e os carros com certeza indicavam que algo muito mais errado estava acontecendo. O frio estava insuportável e ela não conseguia entender como as dezenas de mulheres, que via enquanto o seguia, conseguiam ficar ali seminuas mais de cinco minutos. Encarou um jornal pelo vidro de uma loja e faltou ar quando leu, em grande tamanho, o ano em questão: 1979.

— Onde estamos indo? — Quis saber a ansiosa garota, já sentindo o ar faltar aos pulmões.

Az virou à esquerda e entrou na padaria que fez som de sino enquanto o homem mantinha a porta aperta e esperava por ela. Com o coração acelerado e a boca seca, ela ocupou o local com aquecedor que a fez agradecer mentalmente. Caminharam calados até a última mesa do local e, quando ela se sentou frente a ele, apertando as mãos de nervosismo e encarando-o, Az disse:

— Senti que era você no minuto que entrei naquele galpão — comentou, olhando o cardápio e sorrindo. Ergueu os olhos escuros para a mulher à sua frente, que carregava um tenso olhar pintado com lápis preto. — Eloísa — disse sem pestanejar.

Fechou o cardápio e colocou as duas mãos sobre a mesa, encarando-a sem piscar, mas calma de forma que ela invejava. Toda a coluna da jovem estava travada de medo, não conseguia entender o que estava acontecendo. Olhou para a porta do estabelecimento, querendo sair, mas o pavor não deixou que movesse um dedo. Percebeu então que todos ao redor estavam se movendo em câmera lenta.

— Você é um anjo — deduziu, voltando a olhá-lo, agora mais calma que antes. Ele ergueu as sobrancelhas e balançou a cabeça como se desdenhasse do termo.

Estendeu a mão em direção a ela, cumprimentando-a, e Eloísa encarou antes de aceitar o toque com seus dedos trêmulos, a contragosto.

— Eu te chamei aqui — apontou para a o colar dela com a mão vazia. Afastaram-se novamente e o anjo continuou. — Fico muito feliz que tenha vindo.

— O que é tudo isso? — Perguntou extasiada, não conseguindo decidir se confiava na criatura à sua frente, ele riu. — Eu estava em um avião, pensei na minha casa. Não... nisso — olhou mais uma vez ao seu redor.

— Estamos onde você quis estar — contou Azazel. — Você não pensou na sua casa nos últimos segundos. Pensou em um anjo — sussurrava enquanto folheava o cardápio de maneira sutil. — Ainda bem que pensou — soltou as palavras com rapidez e firmeza, a dicção dele era ótima, mas nada que saía dos lábios daquele homem parecia fazer sentido. — Bem, acho que seu objetivo era Lupita, mas ela não pode ser alcançada no momento.

A descompassada respiração da garota se tornou ainda mais evidente e Azazel ficou sério, coçou a garganta e suspirou. Largou o cardápio para olhá-la melhor.

— Lupita está com uma lança de diamante, preparando as coisas para você, não vai conseguir encontrá-la com isso — aponta mais uma vez para o colar, como se acusasse Eloísa de algo. — Eu sou o anjo que sobrou — sorriu e o corpo dela foi para trás feito uma boneca. — As viagens entre as terras não são fáceis antes do ciclo — comentou, casualmente. — É um erro válido.

Suas mãos se tornaram icebergs. Ela conseguia ouvir seu coração, passou a mão direita no colar.

— O ciclo da era, já te falaram sobre ele? — Quis saber e Eloísa assentiu, mesmo hesitando. — Teodora fez seu papel em entregar os colares de vocês da forma que instrui — sorriu. — O coração é feito de seres especiais — apontou para a mão dela, que se pressionada mais e mais no pingente. Meu bem, por que está constantemente com medo demais para aceitar seu destino? Escute-me, você não vai conseguir fugir dele por mais tempo. Estamos no fim.

Em apenas um movimento, rápido, certeiro e forte, o homem se estendeu ao longo da mesa e arrancou o objeto do pescoço dela, provocando um fino corte onde antes estava o cordão. Ela se levantou, assustada, e assistiu o colar adentrar a mão direita dele, passando pela carne, o fazendo sangrar.

— É real, Eloísa — disse então, colocando-se de pé e dando passos em direção a ela enquanto a garota se afastava de costas. — O inferno te chama — sussurrou.

Finalmente gritou e um eco se estendeu como se nenhum objeto estivesse ao redor dele. Azazel balançou a cabeça negativamente. Seus olhos queimavam, mas não era como se quisesse chorar, e sim uma energia que nascia do seio de sua alma e emanava-se através do corpo, dando a ela uma íris amarela como o sol.

— Meu bem, não tenha medo — pediu. — Diga a Lupita que mandei lembranças. Quando o ciclo se fechar, nos veremos de novo. Espero que de forma mais amigável — sorrindo.

Sentia-se zonza. Ela caiu sentada encostada na parede da saída, sem forças para se levantar. Estava com medo e a tosse que veio depois era seguida de sangue

— Foi uma grande honra finalmente te reencontrar — ela se perguntava o que aquilo significava. Ele se aproximava mais e mais. — Estávamos esperando por você há um tempo — Eloísa não conseguia falar enquanto buscava ar. Agachou-se diante da enferma que não tinha energia para levantar um braço sequer. — Volte para casa — nesse segundo, pressionou com tanta força a palma de sua mão direita entre as clavículas da menina que a peça se afundou em sua carne e o homem, por fim, sussurrou: — Domum.

No primeiro instante, ela abriu os olhos, expondo a surpresa ao reconhecer a palavra que Lupita a ensinou da primeira vez que a encontrou e repetiu no avião, e a dor depois dela foi cruel. Sua última imagem foi de Azazel, que havia aberto as asas brancas de cinco vezes seu tamanho e a cegavam com sua grandeza.


FUGITIVOS DO INFERNO 01 - Ciclo Da Era [COMPLETO]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora