Ela olhou para mim,admirada por alguns segundos,e desencostou seu corpo da grande rocha cinzenta que tinha ao seu lado.Não era de meu feitio chamá-la para uma conversa.Principalmente de uma maneira tão séria.Ser severo não era meu forte,e Malévola sabia disso.Eu gostava de levar as coisas da maneira mais leve possível,então deve ter sido estranho para minha ama a forma como a abordei.
-Estou ocupada. -respondeu,seca.As fadas trevosas ao seu lado arregalaram seus olhos e ficaram olhando para mim,e em seguida para ela,como se esperassem algo de interessante sair dali.Uma das duas até arriscou um sorriso sarcástico.
Engoli em seco por alguns instantes.
-Mas,é importante! -insisti.Sabia que podia deixar aquele assunto para outra hora,mas não queria fazê-lo.
Olhei para os dois trevosos perto de Malévola discretamente,e os analisei.Uma onda estranha veio dentro de mim,e não soube explicar o que poderia ser.Era como se eu estivesse nutrindo algo novo,e esse algo me fazia sentir-me incomodado de ter aqueles caras de boa aparência ali.Não gostava muito deles,nem de estarem tão próximos de minha noiva.
-Por favor,querida. -cruzei minhas mãos,voltando meu olhar para ela.Senti um pouco de vergonha de aparentar estar implorando,porém Malévola conseguia me fazer chegar ao cúmulo do ridículo às vezes.
-Diaval,menos por favor. -ela soava aborrecida,como sempre.Suas íris claras ainda me fixavam,e eu tinha optado por fazer o mesmo.Fiquei viajando,sonhando acordado,ao observar aquela linda criatura.
Balancei a cabeça,voltando a realidade,e decidi apelar para o emocional:
-É sobre Sophie. -soltei.Malévola permitiu que seu rosto fizesse uma expressão diferente da sua rotineira neutralidade.Meio que ela havia se apegado a menina,da mesma forma que se apegara com Aurora no passado.
-O que aconteceu? -seu tom saiu preocupado.Finalmente,tinha conseguido atrair seu interesse em nosso diálogo.
-Tem de ser em particular. -sussurrei,próximo ao seu ouvido.Foi o bastante para fazê-la revirar seus olhos.
-Nós esperamos,Malévola.Os assuntos entre as trevosas podem ser resolvidos mais tarde. -um dos grandalhões falou.Sua voz era grossa e potente.
Minha ama fez um sinal com a cabeça,dispensando os dois,que não excitaram em obedecê-la.Agradeci ao moço carrancudo mentalmente por ele se disponibilizar a sair.
-E então? -minha ama gesticulou com suas mãos,levantando as sobrancelhas - Sophie está bem?
-Olha,está sim,Malévola,a questão é que... -coloquei a mão na boca e roí uma unha,me sentindo ansioso.Nem sabia por onde começar.
-Você está me deixando nervosa. -bufou.Era difícil minha ama assumir que estava se perturbando com algo,então resolvi abrir logo o jogo,antes que a paciência dela se esgotasse:
-Quando você vai contar a verdade para Aurora? -liberei rapidamente as palavras por minha boca.Tão rapidamente que fiquei me perguntando se falei de forma clara.
Um minuto de silêncio,enquanto minha amada fazia algumas caras e bocas.Ela estava confusa,meio perdida,e eu podia ver isso no seu semblante.Malévola não sabia disfarçar o que sentia,pois sua face sempre expunha o que ela insistia em esconder,e dessa vez,ela queria ocultar sua apreensão.
-É sério?Isso de novo?
Não era a primeira vez que eu a indagava sobre tal assunto,mas o tempo estava passando,e as soluções nunca chegavam.Fiquei me perguntando se íamos acabar brigados por isso.
-Meu bem,você sabe que tem de contar...
-Diaval,por favor,pare! -ela levantou uma mão e desviou seu olhar do meu rosto,enquanto suspirava profundamente -Eu sei o que tenho que fazer.
-E por que não faz? -protestei,arriscando meu pescoço e vida -Aurora merece saber a verdade.Nem nosso casamento podemos marcar por conta disso.
Ela calou-se,e começou a andar em círculos,com a parte inferior de suas enormes asas encostando no chão.Sua inquietude me afetava.Parecia claramente que a fada não sabia o que fazer.Pouquíssimas vezes na sua vida,se entregou a insegurança.
Resolvi dá-la um pouco de tempo.Já a conhecia o suficiente para saber que iria falar alguma coisa,uma hora ou outra.Sentei-me numa pedra gigante,que tinha uns desenhos coloridos rabiscados em sua estrutura.Um deles parecia um pônei voador,enquanto o outro,lembrava algumas fadinhas das águas cristalinas de Moors,que faziam um ótimo trabalho,para manter o local simplesmente lindo de dia,e fantástico de noite.O esboço na rocha mostrava cada detalhe de toda essa vida,e magia.
Claro,aqueles desenhos com certeza tinham uma autora bem detalhista.
Sophie!
-Diaval... -Malévola tirou minha atenção dos riscos infantis em que eu resolvera ficar em cima -Eu já devia ter contado isso antes para você,é...
-Isso o quê,meu amor? -falei carinhosamente.A fada fez uma careta.
-Odeio quando me chama assim,já te disse isso. -reclamou,ainda com as sobrancelhas arqueadas pelo nojo.Para mim,a expressão "meu amor" era considerada positiva,mas minha noiva tinha aversão a certos romances.
Eu já havia desistido de tentar entendê-la.
-Tá bom,dona do meu coraçãozinho... -não segurei a risada,enquanto gesticulava minhas mãos,tentando fazer uma forma de coração com meus dedos.Malévola acabou entregando-se a piada,e sorriu timidamente,balançando sua cabeça para os lados,como se continuasse a desaprovar minhas atitudes.Ela tinha de assumir que eu era engraçado.
-O que você queria dizer? -continuei,voltando a ficar um pouco mais recatado.
Suas expressões ficaram tensas,ao passo que ela cerrava os punhos.
-É que é meio...estranho.Eu tenho tido uns...uns...sonhos -desabafou,enquanto passava a mão por seus belos cabelos.Concedi a minha mente uma curta viagem imaginária,de como seria se tudo estivesse em ordem,e já fôssemos casados.Nossas vidas estariam bem diferentes,e nenhuma preocupação continuaria a nos rodear,pois teríamos nos livrado de todas elas.
-Sonhos? -falei,descrente,acordando de meus devaneios.
-Sim.Bom,na verdade,é um sonho só que se repete todas as noites e Aurora está sempre nele.Tenho um mau pressentimento de que não devo contar nada a ela agora,por que acha que estou adiando tanto as coisas? -sua voz pareceu amargurada -Não sou uma irresponsável!
Parei um pouco para pensar,cruzando os dedos das mãos,e passando meus braços por entre minhas pernas.Realmente,deveria existir algum motivo que fizesse Malévola não ir ver Aurora.Ela não podia estar fazendo isso por mal,apesar de que eu sabia que o medo em como a filha iria reagir também contribuía para que a fada trevosa delongasse mais ainda o encontro com a princesa,mas não podia ser só isso que a impedia.E de fato,não era.
-Que sonho exatamente? -questionei curioso e um pouco aterrorizado.
-Não consigo me lembrar de tudo,mas... -disse expirando -Sempre acordo na mesma parte,onde aparece uma Aurora desfigurada,gritando comigo e... -ela fez uma pausa.Parecia que somente recordar aquilo a machucava -Também tinham umas criaturas de minha espécie ao meu lado,falando algo para mim,no meio de uma...uma escuridão desconhecida.
-Minha nossa! -exclamei perplexo -Isso não faz sentido algum.
-Não mesmo.-concordou -Ah,você e Sophie também aparecem nesse sonho,só que todos nós estamos separados por uma espécie de...abismo.Sophie está nos seus braços,chorando e chamando por mim,mas não conseguia sair do meu lugar para alcançá-la.Era como se estivesse presa.
A fada trevosa não era uma criatura de muitas palavras,porém ela estava mostrando confiar em mim,revelando tudo isso,com clareza de detalhes.Me alegrei internamente,mesmo a situação sendo complicada.
Fiquei por alguns instantes me perguntando como seria o restante daquele pesadelo horrível,e que fim poderia ter,se é que Malévola havia conseguido chegar nele.
Depois de falar,minha ama pôs a mão no rosto,cobrindo os olhos,como se estivesse sentindo alguma dor.
-Ei,você está bem? -me levantei da pedra,e me aproximei dela,tocando seu braço.
-Estou sim,é só que... -ela olhou para o céu,evitando contato visual comigo -Eu sei que as fadas estão pressionando para que o casamento aconteça,e isso me desgasta.
Assenti um pouco com a cabeça,mas Malévola não pareceu notar.Aquilo era verdade.
-Tudo isso cansa,Diaval.As cobranças pela cerimônia,meus problemas para resolver entre as trevosas,eu...eu estou péssima. -disse abatida -E para terminar,não estou mais conseguindo dormir por culpa desse sonho estúpido.
Apenas continuei a ouvi-la.Aprendi que algumas vezes,quando não se existe uma solução para determinado problema de imediato,a única coisa que podemos fazer é escutar com atenção aquele que está sofrendo,e oferecer nossa companhia.
Eu não sabia o que podia significa as coisas que minha amada estava sonhando.Não podia dá-la uma explicação.Mas podia ficar ao seu lado,e simplesmente oferecê-la apoio.
Observei o rosto de Malévola,e lembrei vagamente do casamento fajuto dela com Borra.Seu estado de saúde atual não se comparava com o daquele dia,claro,mas seus olhos revelavam um cansaço tremendo,e suas asas estavam inclinadas para baixo,o que geralmente significava que ela estava muito indisposta e exausta.
Minha vontade era de ajudá-la,consolá-la e fazê-la sentir-se bem.E eu tentaria.Tinha necessidade disso.Eu sabia bem como era ficar sem dormir por um pesadelo,mas isso só acontecera comigo poucas vezes.Nem dava para comparar à minha ama,que estava noites seguidas sem conseguir cerrar seus olhos.
-Se você quiser,posso dormir ao seu lado,para te fazer sentir-se melhor -propus envergonhado -Não vou te tocar,sei que já falou comigo sobre isso,mas...eu quero te ajudar,de verdade.
Acabei me arrependendo de ter feito essa proposta em seguida,ao ver a expressão de desaprovação no rosto de minha ama com a ideia.Meu corpo ficou tenso.
Malévola havia me pedido para não dormir com ela até que fôssemos de fato,casados,e concedi,por mais que a desejasse por completo o mais rápido possível.Eu devia respeitá-la acima de todas as coisas,porque isso também era um ato de amor.
Na verdade,o amor é algo profundo demais para ser resumido em uma única atitude.É um conjunto de diversas coisas que envolve esse sentimento tão complexo.Amor é cuidar,sacrificar,e muitas vezes,ter paciência.Tudo tem seu tempo de acontecer,e meu casamento com minha ama não seria diferente.
A fada trevosa deu uma risada e mostrou suas presas perfeitas que outrora insistia em esconder,ao perceber que provavelmente,eu estava vermelho como uma maçã madura.
-Não,Diaval.Isso seria um grande erro.-ela respondeu ironicamente,e dei um suspiro de alívio.Esperava que sua reação ao meu pedido fosse um pouco pior - Duvido muito que você seja um antibiótico para meus pesadelos.
Acabei rindo também,apesar de saber que não havia sido uma boa ideia tentar mudar um pedido de minha noiva.Ela não gostava de voltar atrás nas suas ordens comigo,inclusive em coisas mais sérias como estas.
-Tudo bem,vou esperar. -olhei para o chão,pondo uma mão por detrás de meu pescoço -Olha,quando o dia de contar a verdade para Aurora chegar,e quando você se sentir bem para fazer isso,pode contar comigo para te ajudar,e ir com você.Eu vou estar do seu lado sempre.
Ela revirou os olhos.
-Está bem,Diaval,eu já sei,você diz que posso contar contigo em todas as nossas conversas,será que não tens um repertório mais romântico aí dentro,não? -sua mão veio em direção ao meu peito.
Segurei seu pulso levemente e sorri.
-Tenho sim. -encostei minha testa na dela,fixando seus belos olhos claros -Eu te amo,Malévola.
-É,eu sei -seu corpo ficou a centímetros do meu,como da primeira vez que pude beijá-la e sentir a sua falha respiração no meu rosto.Nossos corações começaram a acelerar em sincronia,e então,ela pôs seus braços nas minhas costas,e não excitei em fazer o mesmo.
Lhe roubei um beijo demorado,já que a situação,e meu ser apelavam para isso.Eu amava tocar meus lábios nos dela,e em todas as vezes,era simplesmente fantástico.Era uma das melhores sensações da minha vida.Por alguns momentos,naquele beijo,esquecemos de tudo.Esquecemos de nossos problemas,esquecemos do que tínhamos para resolver.
Quando estava com ela,o mundo ao meu redor não importava.Desprezava todas as nossas dificuldades,e aproveitava o momento.Com ela tão próxima,meu nariz era capaz de aspirar de uma maneira mais forte seu perfume natural inconfundível de flores e frutinhas silvestres.
Malévola era meu tudo,e eu esperaria o tempo que fosse necessário para tê-la por completo.Faria o que fosse necessário para não perdê-la nunca mais,e principalmente,a faria feliz,pois esse era meu propósito em sua vida.
Não importava mais o que fosse acontecer,pois eu tinha certeza que iria ficar tudo bem.