Aquários

By EuropaSanzio

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Gregório é um homem frustrado com sua atual vida. Sempre sonhou grande e, contrariando as suas expectativas... More

Epígrafe
Primeira Parte - Post mortem, ante vitae
16 de Julho de 1950
21 de Julho de 1950
2 de Agosto de 1950
14 de Agosto de 1950
18 de Agosto de 1950
22 de Agosto de 1950
Segunda Parte - A Vida em Cor-de-Rosa
24 de Agosto de 1950
3 de Setembro de 1950
8 de Setembro de 1950
9 de Setembro de 1950
21 de Setembro de 1950
24 de Outubro de 1950
1 de Novembro de 1950
7 de Novembro de 1950
29 de Novembro de 1950
2 de Dezembro de 1950
Primeira Carta
Segunda Carta
Terceira Carta
Quarta Carta
Quinta Carta
Sexta Carta
Terceira Parte - Arroubos e Arrufos
23 de Janeiro de 1951
25 de Janeiro de 1951
28 de Janeiro de 1951
14 de Fevereiro de 1951
5 de Março de 1951
28 de Março de 1951
12 de Abril de 1951
2 de Maio de 1951
3 de Junho de 1951
Quarta Parte - A Última das Obras
20 de Junho de 1951
26 de Junho de 1951
Quem foi Aquários - ou o que deveria ter sido

4 de Julho de 1951

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By EuropaSanzio

Quarta-feira, 4 de Julho

Faz oito horas que aqui em casa estou e desde então não fiz outra coisa senão rastejar os pés de um canto para outro da sala, do quarto, do banheiro, tecendo o que se passara; que eu caminhe esta casa, uma trilha, de cá até o mar, remoer e cozinhar o que já foi não me trará coisa alguma que não seja o que já bem sei. É madrugada, bruta e lotada de si, quando já estou no nono sono; mas não tardará para os senhores concordarem de que não haverá sono essa noite, talvez a dormida profunda de desnudar-se à lua e renegar-se às preocupações por inteiro jamais retorne. Penso que tive ontem meu último descanso dos olhos e que a partir de hoje viverei em pena de permanecer desperto para sempre, remoendo de canto para canto, cozinhando o que se fora daqui até o mar. Se penso solitário de meu corpo — que se despedaça enquanto não bulo em um buraco frívolo ou não tento alcançar o teto —, a loucura me vem pois somente pensar é mais do que suficiente e as coisas necessitam estar-me ocas.

Se escrevo aqui é somente por isso, porque estou à beira da insanidade e já não há mais ninharias para ocupar-me os movimentos e as pernas já estão cansadas de erguer-se por nada. É madrugada, silêncio acompanhado de um miado que se perde no vento que aspiro pelo choro que fede a chão. Não lembrava desse caderno, tampouco da existência dos senhores e menos ainda há pena de minha parte em confessar-lhes isso, há coisas demais; uma parte do mundo — a maior delas — desmanchou-se e junto levou minha memórias e certezas; sequer sei se ainda recordo-me de mim nessa linha em que me lembro. Rememorei para esquecer-me de forma tão carniceira que nem a releitura da última linha ou desta me fará lembrar de mim ou das rememorações. Aqui lembrei e aqui esqueço. Tudo parece-me um cenário turvo à vista. Já devo estar delirando de louco, quem sabe meu estado já não fosse esse há muito e só agora dei-me por conta.

A coisa é essa: sem motivo ou importância, depositei a primeira letra nessas folhas, após décadas de esquecimento que se romperam com meus cinquenta anos. A coisa também é esta: sem motivo e importância, com o esquecimento de horas que se romperam com o ócio e medo da loucura, colocarei a última letra, pois já não há mais o que ser dito. Haverá a dor, hoje e amanhã, e minha existência — ou o que me resta dela — se dará como não mais que isso; um prolongamento do maior dos desesperos. Que poderei contar sobre a dor senão que ela é dolorosa? Isso o senhores já conhecem, não há nada novo a acrescentar. Não sou um literato para fazer dessa coisa uma poesia ou um músico para fazer da minha dor uma cantoria aos ouvidos; nunca fui, sempre pleiteei, mas não é hoje que irei ser. Sou só um homem, desprezível, lembrado apenas pelos que me tem desdém, e logo não haverá nem a eles e meu fim — que já duvido ser em terras de Doracy — se dará no anonimato, pois a coisa também é esta: não haverá ninguém para arranjar uma lápide a esse homem ou cuidar de um caixão de madeira clara para lhe servir aos ossos ou vesti-lo de um paletó feito numa alfaiataria. Que fazem com as almas assim, esquecidas de si e esquecidas pelos outros? Eis meu destino e que farão dele: cairei sobre este chão, esse mesmo de cimento batido e castigado, não haverá tempo para correr e ir deitar-me na cama; no chão umas moscas e vermes farão festa com o defunto e assim se passarão os dias e as noites até que um vizinho de nariz de pluma nota o odor asqueroso do meu cadáver putrefato e vai conferir, pois ainda não sabe do que se trata; dá de cara com a podridão, esquiva-se, sai pela rua e conta a outros o que viu. Ah, esse homem, que nem sabemos o nome! Que trabalheira e quanto gasto será vela-lo! Não, senhores, seus corações não são de todo insensíveis e chegam a lamentar-se com a morte sem nome e sem cara, mas as lástimas brotam e perduram por não mais que um dia, depois do choque há a pergunta: Que fazer com um homem assim? Irão arranjar-se a seu modo e meu destino conhecido se encerra aqui. E depois? Nem sei! Penso que irei ter nas mãos de estudantes de medicina, como os cadáveres dos sem nome nos laboratórios das faculdades anatômicas. Esse meu corpo, que amou, sofreu, foi tocado e tocou, sendo dissecado, acabado, conservado em formol e em oraçõezinhas que me farão — sei de uns estudantes que bem as fazem —, mas que me valerão o formol e a reza? Nunca coisa alguma me valeu algo, quem dirá numa hora dessas! Oh, senhores, estou indo, estou mesmo indo! Mas não sem razão, não pelo nada. É bem verdade que vivi por nada, acabarei em morte anônima e toda minha vida se passou em variações de tons incolores. Mas a morte, senhores, essa eu não darei ao nada. Essa faço eu questão de oferecer às rasas e poucas alegrias que se passaram e não voltam. Doar-me-ei a ela e em nome dela!

Minha menina de lábios cortados e meias três quartos. Meu sorrisinho mais risonho, minha pintura viva, a obra predileta e a única alegria d'alma. Se eu estirasse em um tapete esses meus quase cinquenta e um anos de existência, entre os intempéries enegrecidos que tomariam conta, haveria espacinhos sem massa, os vácuos que quem visse se perguntaria "que aconteceu aqui? estava morto?". Os ocos invisíveis preenchidos de Mel, quando saí da vida e do nada, fugi de contrário e fui feliz. Inquieto, temeroso pela aniquilação próxima, mas feliz numa vida paralela que se foi e portanto hei de ir também.

Assim se passou os dias que se seguiram a revelação de Mel de que tudo sabia: deixei meu anjinho saturado de mim sossegar da vida, e essa destituição de minha cautela sobre ela acabaria por tornar-se o pior de meus erros e arrependimentos. Mas ainda chegaremos lá. Trancada no quarto, soltando de som somente um soluço aqui e acolá, dando às minhas vistas apenas carreiras que dava de volta ao quarto, quando ousava sair para furtar comida da cozinha. Estava exausta, perversa, fez-me sofrer e, fora do alcance de minha percepção, ela ia percebendo que eu sofria e vivia em estado caótico por conta dela, passou, então, a planejar — em segredo — deixar-me pelo resto da vida da mesma forma decadente que me encontrava: um inútil desnorteado.

Hoje, como noutros dias antes desse, dancei até a sua porta, pus a mão na maçaneta, girei-a pela metade e desmanchando minha vontade com um trejeito na boca — um que Melinda dizia especialmente gostar — desisti. Fui passar um café, fui ler um jornal. Minha criança descansava, a minutos eu sairia e era eu possuidor dessas certezas que embolam e carregam os dias um a um, o cotidiano que nos faz relutar nas mesmas coisas — abrir uma porta — e fazer o de sempre — passar um café, ler um jornal. O verniz do êxtase da fuga e do amor tinha se ido; nós dois éramos arremessados a rotinas tão distintas uma das outras e em um período de tempo tão curto que eu não enxergava como cotidiano a minha relutância, a minha ida para a cozinha e meu sentar na poltrona. Nada tinha de igual há um mês, aquilo não se estenderia por mais uma semana, era assim. Agora, enxergo a banalidade. Havia a calmaria da rotina, o futuro dentro de horas que pode ser facilmente adivinhado; era tudo anfêmero e só essa madrugada — à luz do passado que isso se tornou — enxergo que era rotina. Aquela coisa costumeira de ver Mel — logo, logo, quando ficássemos bem um com o outro —, a dádiva de seu beijo e do seu toque, o gosto de sorvete que eu raptava de sua boca, era a rotina, era o amanhã, era a minha vida.

E então, dois toques energéticos na porta, pum, pum, um fraco e cortês, pum. O barulho que a cancela fazia quando aberta não havia chegado antes das batidas, por alguma circunstância, até mim; sem o rangido costumeiro que avisava das visitas quebrantes do dia, precisei de tempo para assimilar os toques à realidade; à demora, outros dois novos toques, pum, pum, e larguei o café e o jornal, abri a porta, vi um fardado e senti o cheirinho da manhã. Mel dizia adorar aquele cheiro; combina com pêssegos e folhas de ipê grudadas em chão úmido de uma madrugada chuvosa. Ela também adorava a dormida ritmada com a chuva batendo na janela.

— Bom dia, o senhor é Gregório?

— Sou...

Um pigarreado chato se desfez do homem. Melinda detestava quem precisasse de pigarros para dar início a uma notícia.

— O senhor tem alguma ligação com uma menina chamada Melinda? Ela tem por volta de quinze anos.

— Minha filha. Que tem ela? Ela está dormindo.

O fardado de pigarreados desembrulhou de dentro do bolso um pedaço de papel e estirou para mim. Sou Melinda. Moro na Rua Aimorés, Nº.... Procurar por Gregório. Ah, aquela caligrafia! Guardo no bolso e na alma aquele tracinho cursivo e desleixado que minha menina carregava nas mãos, não custo a falar que aquele filamento de Melinda era a minha segunda obra predileta, justo por conter dela.

— De onde veio isso?

— Não quer vir conosco? Acho que é preciso.

— Não... não deixarei minha filha sozinha. Eu...

Abri mão do homem, de explicações e do resto de minha fala, a dançar até a porta do quarto da minha menina, puxando a maçaneta sem a relutância e o trejeito desistente, com um reflexo rápido e involuntário que se atribui a outras tantas coisas do dia. Agarrei os lençóis da caminha de Mel, com eles não passando de lençóis que guardavam ar. As minhas mãos passearam pelo colchão como se pudessem ressuscita-la àquele quarto, os olhos conferiram debaixo da cama como se acreditassem que fossem encontra-la em local tão inusitado, até os pés quiseram correr para a cômoda e abri-lhe as gavetas crendo que Melinda se transformara em miniatura, mas o cérebro entendeu a tudo e em minutos estava eu dentro do carro do fardado, ele explicando-me alguma coisa enquanto meus ouvidos se fechavam a sua fala e abriam as atenções ao som da cidade que convulsionava em toneladas de destroços, acompanhando a degradação do céu que agonizava. Com céu e prédios derretendo sem se fundirem, com os letreiros de anúncios em língua que não sabia ler caindo em pedaços e com o cheiro de pão e bueiro — o aroma das esquinas de Beagá — exalando uma pungência viscosa e enferrujada, o fardado trouxe-me à única coisa que parecia inatingível ao restante que desabava em suas beiras; aquela dupla de arcos de concreto com seus postes vermelhos fincados em duas fileiras. Estávamos em baixo do viaduto Santa Tereza, a obra que colocada a minha vista pela primeira vez veio acompanhada da fala "não é uma beleza?" vinda de um dos meus colegas mais chegados da Faculdade — talvez o próprio que me dera esse caderno. Duvidei da graciosidade daquele monte de cimento, discordando da beleza e tendo minha falta de apreço recebida com um ar de desgosto e decepção. Santa Tereza passar-me-ia despercebido aos olhos se não fosse esse comentário de décadas atrás; achava-o brutal e sem elegância, além de detestar sua audácia em residir no centro de uma grande e bela cidade, ao passo que não tinha a corpulência necessária para tal posição. Rude e atrevido, era tudo que eu pensava daquele viaduto. Minha antipatia por ele talvez já tivesse uma razão preestabelecida em minha alma — não fosse seu cimento e sua ousadia —, odiei primeiro as obras de puro concreto que emergiam em meio às clássicas de estilo francês pois, de alguma forma que só deuses concebem, conhecia que estruturas assim, cinzas e insolentes, marcar-me-iam um mal eterno.

Conheci o porquê de detestar tanto aquela obra enquanto todos a tinham apreço, foi aquela apontada. A mórbida levantada no dedo indicador que o fardado deu para além da rua, o outro lado, a parte escondida aqui e acolá pelos carros e cavalos e pedestres que se iam. Mais dois fardados guardavam um embolado no chão, tirando um bocado de suor da testa, lançando ao ar, batendo os pés impacientes. O braço baixou e a apontada morreu com seu olhar encarquilhado pelo sol que lhe batia as vistas. "Que me aponta lá?" pensei, mas não precisou que eu lhe perguntasse ou que ele me respondesse, pois como um vocativo garrido de barulho, o outro lado chamou por mim, ávido para dar-me a resposta que eu pedia. Cruzei a av. dos Andradas, cheguei ao seu meio fio encoberto pelo viaduto, os outros dois que ali esperavam impacientes apontaram-me com o olhar a coisa estirada no canto. Encarei o embolado branco sem reconhecimento. Queria aqueles homens dizerem-me que tinha algo a ver com Melinda aquele acumulado? Ela estava em casa, dormindo, evaporou do lençol da sua cama para ir parar em outro, fúnebre e frio. Aproximei-me da mentira e um outro fardado puxou metade do pano para que eu pudesse conferir o rostinho perfeito que se guardava em baixo. "Temos que tirar isso daqui, logo" alguém concluiu em cochicho e outro deu-lhe um tapa de reprovação no braço. Ajoelhei-me, submisso como sempre fui, incrédulo por encontrar aquela cara terna e única em um acostamento estreito e sem importância, dormindo como deveria estar, tirando fora a exaustão que a vida lhe causara.

— Reconhece-a?

— Está... Perfeita. Que há de errado com ela?

— ...Foi-se. Jogou-se do Santa Tereza por volta das cinco e meia da manhã como relataram algumas....

Um fio de sangue tão igual e vermelho aos que lhe fiz escorria pelo nariz e outro abria espaço entre os cabelos até a testa, deve ter tido traumatismo craniano... foi o comentário do outro, mal se vê diferença por fora, por dentro está estraçalhada. Foi-se como um atrapalhar no trânsito da quarta-feira, uma nota de rodapé num jornal local, envolta em um sensacionalismo envernizado pela figura suicida. Foi-se em uma conclusão rápida e inumana de que precisava ser retirada dali, logo. Foi-se e ela já não era e não podia mais sustentar a figura de Melinda para o resto do mundo; era a notícia escanteada no canto da página, um corpo que perturbou os motoristas matinais da av. dos Andradas, um comentário. Só.

A vida convulsionava e ao cabo de segundos dei-me por conta — em uma infeliz demora — de que já não era vida o que segurava em meus braços. Soerguei seu corpinho pela metade, tomando suas bochechas, que descoravam a cada nova olhada, as pontas dos meus dedos sentido como uma brisa fresca percorrer o fundo da pele que perdia a cor humana; estava morta, estava esfriando, logo ficaria incolor e assumiria a defunta que era. Mel escapara de minha mão em sua volatilidade e ali estava eu preso ao eco do que se evaporou, figurando um quadro que eu poderia ver pintado nas paredes de pé direito alto do Louvre. O homem que possuía a mulher amada lhe escorrendo pelos braços enquanto a própria cidade era aquarela de vultos de densa poeira. Instransponível aos olhos, as manchas cobriam ao redor e em Santa Tereza caiam a uns bocados, deixando que o topo dos arcos mostrassem-se atrevidos como eram; os fardados existiam imperceptíveis aos olhos mais atentos e o único e magnânimo destaque era minha cara comprimida em uma contorção de dor, meus beiços mudos falando palavras guardadas apenas por aquelas orelhas mortas, meus braços que a amaram botando um apanhado de força onde já não poderia existir mais nada. Impotente, o homem olha as frestas que as pálpebras que perdem cor deixam revelar; aquele fiozinho de mel que já não escorre. Todo o quadro é uma estátua, mas aqueles olhos açucarados possuem uma natureza fúnebre ainda mais violenta; o apreciador sabe que a poeira amarronzada continuará a seguir seu movimento, sabe que o homem impotente se levantará e tomará caminho, sabe que até os arcos estáticos de concreto bruto possuem movimento após aquela cena. Mas aqueles olhos parados... aquele corpo amado por uma última vez, tendo como única ação a pele que deixa o rosa em uma reação não humana... o apreciador dolorosamente reconhece que a menina não sairá de seu estado inerte e que a pintura faz parte de sua última estação por essas bandas. Os corações sensíveis bem sabem, os fardados já o sabiam desde de que foram obrigados a arrastarem o corpo para o acostamento, os motoristas, cocheiros e pedestres que ali passaram e deitaram suas olhadas curiosas ao corpo — tão insensíveis e despretensiosas — também sabiam que era o fim de alguma coisa, eu soube numa demora, mas soube e agora sei.

Que estejam bem e renovados pela morte que não os acomete; podem rir-se se assim quiser, vivem e podem fazer dessa história o que lhes for de agrado, conhecem que não saberei de suas piedades e por isso mesmo nunca poderão valer-me nada e convém ser feliz pela tristeza que não é sua; deitem-se e permitam-se deliciar-se por ela, a obra que acabo de lhes apresentar, a última das obras.

...

Falta pouco e por isso mesmo não há porque omitir dos senhores que desatei a chorar tão logo o último parágrafo se findou. No teto e nas paredes das igrejas se pintam o caminho de cristo até a cruz; Judas entrega o filho dos filhos, dão neste as chibatadas, prendem-no à cruz e há o milagre da ressurreição. Os fiéis que peregrinam o olhar por estes quadros poderiam, dotados de mesma tristeza, fazê-lo ao viajar pelas pinturas que minha vida lançou às paredes — não de igreja, não sou para tanto, quem sabe de muros do fundo duma casa abandonada e tida como importunada por demônios. Só que no meu fim, senhores, para a lástima dos fiéis mais otimistas, não há ressurreição. Nada se sucede à última das obras; nem em quadro e tampouco narrada em um papel. Sem os milagres dos deuses, os senhores e eu sabemos quando tudo vai terminar, não há para que ser prolixo ou repetitivo. Fui tinta à mão de pessoas e causos em demasia, uns que me depositaram com delicadeza e outros que desperdiçaram-me a propósito de si. Hoje sou tinta na mão da dor, da tristeza e da angústia. Em um punhado, tiram-me aos montes e lançam — despreocupados em seu desperdício a mim — a substância transparente a um quadro já grosso das demãos excessivas de tinta das dores dos outros; sobrepõem-me a elas, fazendo de mim mais uma demão que se une ao pesado, para que uma nova camada de outro possa descer. E então, esse meu corpo fúnebre desgraçado, anônimo, sem disposição definida das coisas que compõem um rosto, irreconhecível ao mundo e sem as sensações e racionalidade que outrora tornavam-me humano se transforma em mais um dos estratos da... obra? Mas que obra? A última das obras já se passou! Esse quadro enxuto de vida e lotado de mal é o inferno que nunca se conclui e vive para se perpetuar sendo o que é; é a primeira das obras e nunca se findando é também o quadro que nunca se conclui.

Eu me fora, estou sendo dissecado e não há quem lembre de mim. Quando eu terminar de ir, quem lembrar-me-á da notícia do rodapé ou do infortúnio da manhã no transito? Quem lembrar-se-á dela. Nem sei que horas ontem deixou ela essa casa decidida a fazer o que fez, sei que poucas demais para se fazer injusto o esquecimento de sua notícia na nota de jornal; já virou passado longínquo a essa multidão exausta, pois não tiveram eles o deleite de conhecer a minha menina e a seus jeitinhos. Ah, minha menina de Bouguereau! Ela ainda tem a mim, eu vestirei seu corpinho das suas cores, seu azul anil, seus sapatinhos e lábios vermelhos, tentarei até reviver seus rabos de cavalo. Seu corpinho dócil e castigado, esse terá seu fim cuidadosamente orquestrado, terá uma lápide banhada a ouro e seu nome será escrito em safiras, Melinda. Para que o resto do mundo não se esqueça. Que adianta? Roubarão as pedras e o ouro, violarão minha menina e nós dois — um ser divino e um miserável — acabaremos por ter o mesmo fim, pois não se encontra justiça na morte. Que eu vá, que eu vá! Muitas são minhas tristezas em ir-me, mas junto todas elas numa só: eu vou e já não haverá mais Melinda em parte alguma.

Pela manhã — que conto uma hora para brotar no céu — haverá de vir um corpo para cá, um que terei que vestir de Melinda, imitar Melinda nas cores da roupa e dos sapatos, quando a pele branca teimará em dizer-me o contrário. Muda por já não poder falar nada, viveu falante de besteiras e calada sobre si, foi-se abarrotada de falas, entupida, mas preferiu dessa forma a dar o gosto de vomitar tudo em uma última carta, aquelas que os suicidas gostam de deixar enfiado em seus bolsos, despejando o que os atormentava por não dizer ou fazer. Um dia, senhores, chegou ela a parafrasear um certo autor, disse-me que últimas palavras são para tolos que nunca disseram o suficiente. Achou ela que estava indo e que me tinha dito o bastante? Menina tola! Tola em dobro, pelo silêncio e pelo seu achismo burro que hoje me condena em triplo; é sua morte, é seu silêncio mas, sobretudo, o seu silêncio eterno que fincou o óbvio: jamais terei dela mais nenhuma palavra. Há reminiscências do que foi nosso último beijo, assim como há do conteúdo das minhas vistas ao olha-la pela última vez... mas de suas palavras não há nada, nem sons que poderiam formar frases inventadas e apaziguar-me.

Que queria dela, então? Um balbuciar, que fosse igual ao resto dos suicidas que deixam explicações, suas últimas e açucaradas palavras, a folha a qual choraria em cima por esta madrugada e pelo resto da minha vida. Não me deu, não quis ser a tola. Na falta de qualquer preenchimento de sua parte, penso, senhores, que ela dir-me-ia assim (e agora terão que perdoar-me pela fantasia): Não estou indo pelo que me fez ou deixou fazer. Vou pelo que já vivi — as coisas pelas quais nunca me perguntou, nunca quis saber, não se importava o suficiente ou neguei-te falar. Vou por amar de mais viver — e não me satisfazer com o que tenho agora. Vou porque não há ninguém e sei que também não haverá — já não há sequer o senhor. Amei-te para além das horas e do tempo. Foi meu único amor. Não foi isso que sempre quis ser, meu único amor? Pois é e será assim para sempre. Pois eu te amo e lhe digo isso a momentos de deixar a vida; pode ter a certeza que meu amor morrerá comigo e será — como tão poucos amores são — para sempre.

Queria eu que essas fossem as suas últimas palavras, mas não o são, pertencem-me e dizem mais sobre mim do que sobre Melinda. Notaram, senhores, uma redenção da parte dela sobre minha alma? Também notei. Anseio por um perdão seu por coisas que sequer sinto-me culpado, são essas palavras, assim, coisa nem minha nem dela, são as frases que o remorso traz, há sempre ele nas mortes, fins nenhum estão isentos da voz calada que nos acusa de incapacidade e de ausência, mesmo que estes nem tenham existido. Por mais polidos e perfeitos que sejamos com o outro, quando este se vai antes de nós, tornamo-nos tralha inútil e há de haver remorso e súplica por perdões que nunca virão.

Que convenha ou não um perdão, que seja necessário os descartável, orgulhoso ou sincero, a verdade que lhes entrego, senhores, é que minha menina, se assim pedisse por desculpas minhas, já teria ela, à essa altura, dado a benção da sua redenção. Isso porque, curiosa como é, é certo que espreitou-me do outro lado e viu-me chegar de Santa Tereza, abrir nosso guarda roupa e apalpar desesperado aquelas saias azuis anil, tuas saias, Melinda! Elas em meio aos meus ternos e tuas blusas e, mais abaixo, teus sapatinhos vermelhos como a única cor real na fileira de calçados sem graça que calço; viu-me tocando a poeira que como rastro de estrada levantava teu cheirinho ao meu rosto; teu aroma que invadiu as brechas do meu nariz para ir-se até nunca mais. Perdoou-me com teu coração quando presenciou de tão perto, à distância tênue da vida e morte, eu dando por conta que tudo aquilo que via e pegava estava morto e assim ficaria pelo resto de tempo que sobrava de mundo; agarrei-me incrédulo às tuas saias, e também viu a isto, eu desmoronando no chão como teu corpinho caia em um pulo de costas à cama. Viu que esfregava essas minhas rugas afogadas em lágrimas no tecido, de forma tão ininterrupta e grave que poderia enxagua-lo; presenciou àquela dor, Melinda, o meu reconhecimento de olhar àquele pedaço de pano que fora tocado por tuas mãozinhas, roçaram em tuas coxas e, como eu, agora estão sentenciados a jamais te embrulharem de novo. Ah, Mel, perdoaste-me que eu sei! Viu a isso doutro lado e teu coração já estava à beira da redenção, mas precisava de algo a mais para confirmar que me doía a tua ida e que minha consternação era a desculpa que eu não lhe pedi. Teve teu algo mais, ficou mais um pouco e viu meu lábios, esses que tanto te quiseram bem e te encheram de beijos, tremulando ao falar aqueles versos de um poeta distante, enquanto ia desprendendo-me de teus cheiros e de tuas carnes que corriam em saída da casa.... Cansado de chorar pelas estradas, exausto de pisar mágoas pisadas, hoje eu carrego a cruz das dores!

Minha Mel, hoje teu corpinho desabou não em uma estrada pisada e chorada como nos versos, mas numa avenida cheia demais para conseguir exaustar-te de algo. Teus bracinhos e pernas repousaram na agitação, não sustentando a mais nada por ter transferido todo o seu antigo peso para mim, num doloroso presente póstumo. E eu, que já estava tão cansado... piso nas mágoas pisadas de malgrado.

...

Abandonei a fala aos senhores, agora retomo para lhes dizer adeus, é vez de dar toda minha fala a Melinda e, se bem quiserem, podem ler ao resto, não irei priva-los desse pouco que ainda falta, mas deixo um aviso — em particular aos que continuam a ler na espera de um fim — o fim já se passou.

...

A manhã que sucede a do teu fim já se ergue, olhei através da janela para ver a aquarela de cores se misturando onde o céu toca os telhados e, especialmente, para deixar entrar o cheirinho matutino que tanto vi-te perder o folego de aspirar de olhos fechados. Agora compreendo, não poderia ter ido noutra hora que não nesta; deixou tua morte com cheirinho de fresco e de folhas de ipê. Todas as manhãs serão lembranças do que fostes. Do lado de lá, as tintas das casas e dos becos brilham em cores, as nuvens desnudaram por completo sol e ele e o céu também brilham juntos; a vista é como uma obra de Van Gogh, quando nem as cores nem o brilho afugentam a melancolia que esconde a cena. Van Gogh bem que poderia ter pintado o mundo em suas manhãs de sol; é tudo colorido e desolador, numa ambiguidade que só me deixa mais deprimido. Já fechei a janela, vejo os feixes amarelos serem coados pelas frestas, os raios que iluminaram teu rostinho até o fim, que esquentaram também a Piaf e a Balzac, aqueles de quem tanto gostava. Essa luz que ilumina os começos, meios e fins, todos os rostos e corpos, fez e faz outros acordaram e dar início ao que já se iniciou; eles têm que fazer suas coisas e nós, Melinda, tínhamos que fazer outras tantas. Tínhamos que tomar aquele sorvete de flocos lambuzado de calda de morango; tinha eu que provar teu beijo conhecendo que era o último; desnudar-te de riso, acariciar-te de pouco em pouco, conhecendo que depois não haveria prolongamentos, apenas a aniquilação, a morte dupla. Pois, Melinda, meu punhal que beija o coração, aqui falei que tínhamos nós que irmos em um mesmo instante e fim; nós dois apertados de tal forma que ocuparíamos não apenas o mesmo lugar na Terra, a mesma pintura ou o mesmo tempo; não preencheríamos espaço algum no mundo, tamanha justeza que seria esse desfecho: não haveria peso nem chão a ocupar! Os aquários se

FIM


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