Aquários

By EuropaSanzio

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Gregório é um homem frustrado com sua atual vida. Sempre sonhou grande e, contrariando as suas expectativas... More

Epígrafe
Primeira Parte - Post mortem, ante vitae
16 de Julho de 1950
21 de Julho de 1950
2 de Agosto de 1950
14 de Agosto de 1950
18 de Agosto de 1950
22 de Agosto de 1950
Segunda Parte - A Vida em Cor-de-Rosa
24 de Agosto de 1950
3 de Setembro de 1950
8 de Setembro de 1950
9 de Setembro de 1950
21 de Setembro de 1950
24 de Outubro de 1950
1 de Novembro de 1950
7 de Novembro de 1950
29 de Novembro de 1950
2 de Dezembro de 1950
Primeira Carta
Segunda Carta
Terceira Carta
Quarta Carta
Quinta Carta
Sexta Carta
Terceira Parte - Arroubos e Arrufos
23 de Janeiro de 1951
25 de Janeiro de 1951
28 de Janeiro de 1951
14 de Fevereiro de 1951
5 de Março de 1951
28 de Março de 1951
12 de Abril de 1951
2 de Maio de 1951
Quarta Parte - A Última das Obras
20 de Junho de 1951
26 de Junho de 1951
4 de Julho de 1951
Quem foi Aquários - ou o que deveria ter sido

3 de Junho de 1951

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By EuropaSanzio

Domingo, 3 de junho

Senhores, se antes a reclusão de Melinda era por motivos de castigo, acabou por virar uma necessidade. O seu pescoço àquela altura havia virado um cilindro machucado, as mangas da roupa deixavam à mostra os mais variados tons de lilases feitos por mim, sequer o pedaço de pele que imergia entre o topo de sua meia e a barra da saia escapara de meu amor. Com um cuidado maior sob ela e com quem a visse, as atenções e olhos julgadores dos outros pensionistas se intensificaram sobre mim. Não permitia que Meire a visse enquanto eu a guiava para o banheiro no corredor — não com as manchas tão gritantes—, não havendo nem a mulher para confirmar que Melinda estava sã. Então, há um mês, aconteceu de Vânia chamar-me em um canto, toda desconfiada, tateando as mãos pela cintura e evitando-me encarar com clareza. Enquanto a mulher parecia estar juntando sua coragem para dizer-me sei lá o que, impaciente joguei-lhe:

— Há algo que queira me dizer?

— Oh, Senhor Gregório! — soltou em um genuíno alivio — Não tenho nem boca para lhe falar...

— Pois tente. Há algo se passando sem que eu conheça, bem sei.

— Nota, Gregório? Pois bem, longe de mim intrometer-me na vida pessoal de meus hóspedes, mas há certas coisas que não podem ser ignoradas. Eu bem que ignoro, finjo não ver e olha que finjo bem! Mas nesse caso não é bem um incômodo meu.... é do resto da clientela.

— Que há? Para que tanto arrodeio se pode simplesmente falar-me?

— O senhor terá que ir! É uma decisão minha, de fato, mas não sem razão. Rogam-me para que eu faça isso, toda a gente. Oh, meu Deus, que digo eu? Agora o senhor culpará os pobres coitados. Pois bem, que culpe, mas não há volta. Terá que ir, já não conseguem fingir não vê....

— O que não conseguem fingir não vê?

— Linda, senhor Gregório, a sua filha. Na verdade, eles não fingem não ver, esse é o problema... ela sequer dar as caras. Todos dizem ouvir coisas estranhas vindo do quarto... Oh, não me peça para continuar falando. Apenas estranham o senhor e ela, bem como seu repentino sumiço. Ela era muito amiga do rapaz, Cássio... ele andou preocupado com o estado da menina. Ninguém ousa perturbar o senhor com isso, já que é motivo de rubor tal intromissão. Sobrou para quem? Para mim! Restou que eu lhe falasse para arrumar outro lugar para ficar, pois aqui já não é mais bem-vindo. Não guardo nada de ruim do senhor, mas...

Fiz um sinal com a mão, implorando para que ela parasse com aqueles lábios acabados em rugas. Já havia entendido há tempos a desconfiança dos infelizes para o meu lado. As curtas e alfinetadas insolências que se alastravam pelos momentos em que eu compartilhava de minha presença com eles, suas amarguras pessoais, seus corações ensombrecidos por grossas camadas de podridão; gente comum e portanto incapaz de compreender a qualquer beleza. Era bem verdade também que eu não almejava ficar com a minha Melinda para sempre naquele lugar que se tornava cada dia mais detestável; a cômoda encostada na parede, o criado mudo que dividia as camas, os lençóis e as cortinas da janela, as débeis e dolorosas noites haviam sido assistidas por todos esses objetos que jamais esquecer-se-ão do rosto meu e de Mel. Abalados quanto nós próprios, os inanimados seres sem voz gritavam para que fossemos embora, já não éramos toleráveis às suas vistas inexistentes. Não havia com o que me conformar, sequer já havia me conformado antes. Minha partida seria como que um dar de ombros indiferente; tanto me fazia uma coisa ou outra.

A velha viúva deu um prazo de curtos quatro dias para que tomássemos a vida longe da dela e em dois eu já tinha o novo teto. Uma casinha de aluguel, com espaço somente para eu e Melinda, sem qualquer outro intrometido; eram ausentes, portanto, possíveis pretensões amorosas que nos levariam a discussões intermináveis. Para Mel, não haveria com quem mais conversar, olhar ou compartilhar a vida além de mim. Seríamos nós na casa miúda, encolhida entre duas árvores na rua de fileiras de casas igualmente ordinárias. Um quarto, uma cozinha, uma sala, um banheiro e um outro meio quarto. Portão cinza respingado de restos de tinta vermelha, um jardim de concreto estendendo-se por dois metros até dar com a porta de entrada, um murinho minúsculo, onde reside um puxadinho sem tento que outrora poderia ser um acúmulo de bagunça. A casa que faz qualquer um bater de frente com suas decadências interiores, não precisávamos de mais que isso.

Melinda recebeu a notícia da mudança às vésperas, com um dar de ombros indiferente tão igual ao meu. Esperava por mais questionamentos da sua parte, mas sua doce vozinha apenas disse com ar abrandado "Iremos nos mudar? Para onde?" "Aimorés? Não é tão longe da minha Bahia", referia-se à rua, senhores, sua querida Bahia que há tanto não presenteava com seus passos saltitantes. Entristeci-me de instantâneo à sua fala, minha Bahia. Minha Bahia, Gregório, aquela que há tanto o senhor priva-me de andar!

No dia seguinte, esperei as nove e meia da manhã — o horário mais calmo da pensão — e deixei que Melinda descesse pelas escadarias até o térreo. Foi-se com o olhar todo atento paras as frestas dos cobogós enfileirados nas paredes, a luz batendo-lhe no rosto e esquentando a pele fresca, à beira da estupefação após o mês reclusa. Acabado seu entorpecimento pela cidade privada a ela por dias, estávamos em nossa casinha, não sem a surpresa de minha Melinda. Havia esquecido de contar-lhe que deixaríamos as pensões de lado.

— Moraremos só nós dois?

— Sim, não lhe agrada?

Atônita, parada sobre o chão de cimento batido, Melinda balbuciou que receava viver a sós comigo. Ofendido, descartei sua fala com profundo pesar, acrescentando que ficava muito decepcionado sabendo que me tinha tanto desprezo, quando eu era a única pessoa que havia sobrado em sua vida. Chocou-se com meu corpo, não em um abraço, mas enfiando-se em cada beirada minha, confessando amor.

— Melinda, falo sério, poderei deixar-lhe sozinha aqui? — perguntei-a enquanto persistia em seu súbito carinho ao meu corpo — Aqui não é um quarto de uma pensão no terceiro andar. Mesmo que eu tranque as portas e janelas, sabe bem que pode força-las e ir embora. Terei que trabalhar, deixarei você sozinha. Como posso confiar em alguém que diz ter medo de ficar a sós comigo?

— Para onde fugirei? Diga-me, a quem pedirei por arrego? O senhor vive repetindo que eu só tenho a ti, eu também sei.

— Queria que fossem verdadeiras essas suas palavras, mas por que não consigo acreditar nelas?

No primeiro dia, voltei aflito para casa, crendo que quando abrisse a porta encontraria a fuga da minha menina. Não fora isso que aconteceu. Estava ela sentada no chão, sobressaltando-se quando entrei. Deu-me um sorriso que fez-me lembrar dos tempos de Doracy, dela no balanço sorrindo a minha chegada, a praça, o baile, todos lugarzinhos de nada que se tornaram especiais a mim por conta daquele sorriso. Uma nostalgia violenta que me levou a beija-la ali mesmo, tomando seu pescocinho machucado da forma como eu desejara fazer antes de tê-la. Nesse dia, aconteceu de Melinda pedir-me para fazer do pequeno cômodo que imitava um quarto um cantinho seu. Estranhei seu pedido, dizendo-lhe que ela já tinha um quarto, o nosso. Mas ela alegou que precisava de privacidade e espaço para pensar. Eu, claro, tive certeza que ela faria disso um motivo para arranjar desculpas a não dormir comigo. Eu não estava enganado. Passou a desabar — em um sono fingido — antes das oito e não em meu colchão, mas sim na minúscula caminha de montar de seu diminuto quarto. Nos primeiros dias, pensei em acorda-la e dar-lhe uma lição por tentar fazer-me de bobo. Porém, não a afrontei e deixei que a situação continuasse, com pena do meu amor e de seu corpinho machucado que tentava recuperar forças.

Nos dias que se seguiram a essas ausências de nossas noites, fui recepcionado com os arroubos de maior intensidade. Em suma, Melinda voltou a amar-me de forma tão dedicada quanto outrora. Dá-me voz de exasperação, enquanto confessa-me seu amor e me beija o rosto. Eu afago sua cabeça, dou-lhe um beijo na boca e sei que nunca estivemos tão bem!

Na casa habita apenas uma espaça mobília do antigo dono; verberando um eco absurdo pelas paredes. Melinda, em especial, adora essa peculiaridade e brinca com isso, caindo na gargalhada em algumas de suas palhaçadas, voltando o olhar para mim a conferir se estou compartilhando da graça. Rio sobretudo porque vê-la em risos arranca uma alegria espontânea dessa minha pobre alma. Amo-a quando brinca e diz coisas que só aquela sua mente tão jovem — mesmo que tão inteligente por suas leituras e possuidora de uma esperteza natural — poderia pensar; besteiras do dia a dia, frases soltas e perguntas sem razão aparente. Qualquer coisa que ela faça em sua espontaneidade juvenil e dócil é motivo para que eu me alegre e a ame. Tornou-se quase imaculada desde que voltara a seu estado a priori; além de regressa à minha Mel, acrescentou uma atenção depositada em mim. Dá-me carinhos onde nunca antes olhava: um beijo na minha testa, uma alisada inesperada pela palma da minha mão. Tudo tão terno e puro que é impossível não confiar em seu amor. Mais sadia e mais amável, sua pele perdera o aspecto cinzento, seus lábios mais róseos, os braços quebradiços assumiram firmeza, os ossos do quadril mais escondidos por gordura e até apalpar suas nádegas tornou-se mais prazeroso. Suas manchinhas roxas se auto curam e — com nossas noites estando menos rotineiras — outras demoram para ocupar seus lugares, com a pele da minha menina ficando mais à mostra e menos perigosa aos olhares dos outros.

Oh, senhores, minha vontade de toma-la toda noite é grande! Mas, acima desta, há uma outra, mais voluptuosa e compreensível somente àqueles que amam de forma verossímil; cuida-la. Meu amor, então, confunde-se com um instinto quase paternal de quere-la bem pelo anjo que ela é. Muitas raivas ela me fez, tantas! Há malícia e perversidade em seu espírito divino, não os esqueço e tampouco os nego. Mas que me valem eles nas horas em que sua submissão e doçura se sobressaem? Esqueço a tudo, as raivas, minhas dúvidas, a traição infestada em corpo. Se tive ódio na noite da minha descoberta foi porque, hoje percebo, amava-a não somente como um amante carnal, mas como uma figura que entendia que aquela menina transcendia a pureza, do jeito que todo pai vê seu filho. Estupefato por saber que não, que ela era mais humana do que supunha — impura e violada — não suportei e a puni. Não me culpo nem me lastimo pelo mês de enclausuração, pelas noites que a tomei a contragosto; continuo a fazer os dois — porém com uma menor intensidade absurda — e sua resposta a eles vem subtendida de uma compreensão cada vez maior. Doeu-me, os senhores bem sabem, fazer a ambos. Sentia pena dela calada e com seu obrigada na reclusão. Chorei em seu pescoço quando a tinha nas noites. Sofri, sofro, mas hoje tudo que fiz vem se revelado certo. Gasto todas as minhas energias olhando-a de longe — como antes eu fazia para tentar fartar minhas vontades — descobrindo seus detalhes cada vez mais difíceis de serem apercebidos, amando-a ainda mais. Curvo minha cabeça e ela surpresa me flagra a olhando-a, sorri e eu, que ainda tento manter minha indiferença a tudo dela, sussurro-lhe que a amo. Permito até que ela saiba que a admiro dormindo em seu sono ensaiado, vendo-a sem toma-la, certo que talvez seja por isso que ela esteja melhor e mais terna.

Caros, se os larguei aqui por um mês, foi por causa disso! As mudanças, minha Melzinha em sua melhor fase, seus sorrisos e o nosso amor. Os arrufos se vão e muita coisa acontece, mas não tenho vontade de contar-lhes porque iriam se cansar de minhas bobagens românticas. Aguentariam eu lhes falando do ângulo do pé dela? Ou de como seu cabelo está maior e suas ondas mais caídas? Ah, meus queridos, não se cansem de mim e do meu amor por Melinda; jamais irei dar-me por satisfeito dele. Minha vidinha! A porta de seu quartinho está agora entreaberta e vejo um pedaço de sua perna de onde estou. Ousarei, talvez, a ir lá e acariciar um tufo de seus cabelos; ela sabe que faço isso pelas madrugadas, que não me aguento e dou-lhe beijos no rosto e acaricio seu corpo. Ela dorme — ou finge que dorme — e sei que eu poderia toma-la ali; despertaria espantada, empurrando-me sem reconhecer a mim. Mas minha força não a largaria e minhas mãos já estariam a tirar suas roupas. Nunca fiz isso, também não faço agora. Fico olhando-a incapaz de qualquer coisa senão de ama-la.    

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