Aquários

By EuropaSanzio

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Gregório é um homem frustrado com sua atual vida. Sempre sonhou grande e, contrariando as suas expectativas... More

Epígrafe
Primeira Parte - Post mortem, ante vitae
16 de Julho de 1950
21 de Julho de 1950
2 de Agosto de 1950
14 de Agosto de 1950
18 de Agosto de 1950
22 de Agosto de 1950
Segunda Parte - A Vida em Cor-de-Rosa
24 de Agosto de 1950
3 de Setembro de 1950
8 de Setembro de 1950
9 de Setembro de 1950
21 de Setembro de 1950
24 de Outubro de 1950
1 de Novembro de 1950
7 de Novembro de 1950
29 de Novembro de 1950
2 de Dezembro de 1950
Primeira Carta
Segunda Carta
Terceira Carta
Quarta Carta
Quinta Carta
Sexta Carta
Terceira Parte - Arroubos e Arrufos
23 de Janeiro de 1951
28 de Janeiro de 1951
14 de Fevereiro de 1951
5 de Março de 1951
28 de Março de 1951
12 de Abril de 1951
2 de Maio de 1951
3 de Junho de 1951
Quarta Parte - A Última das Obras
20 de Junho de 1951
26 de Junho de 1951
4 de Julho de 1951
Quem foi Aquários - ou o que deveria ter sido

25 de Janeiro de 1951

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By EuropaSanzio

Quinta-feira, 25 de Janeiro

Tudo mudou. Em questão de horas, a vida que aqui narrei por esses meses fora desfeita. Escrevo isso muito longe de onde costumo narrar minhas coisas, distante do meu escritório, afastado de Vila Doracy em demasia. Os sons, os cheiros, os toques, todos os meus sentidos capitam coisas inusitadas. Mas, senhores, tenham calma! Peço-lhes paciência às minhas histórias. Jogar aonde agora me encontro e ir embora não funcionará. Não fará sentindo aos senhores e tampouco a mim. Nem eu, que estou aqui e vejo a tudo isso, acreditaria no que digo. Há uma história súbita, digna de ser narrada. Adianto, senhores, que estou feliz! Satisfeito como nunca antes me viram. Sabem as poucas felicidades que aqui colecionei? Pois bem, juntas elas não são a minha de agora!

Mas vamos lá... Precisamos ir lá!

Após algumas dezenas de horas de choro e o desespero, há a calmaria. Assim foi comigo. Debilitado, aos poucos a sanidade voltava até mim. Já não considerava de todo impossível ter a minha Melinda. Calculava quantas vezes na semana conseguiria ir vê-la naquele fim de mundo, em meu carro, sozinho. Talvez, pensava eu, fosse até melhor. Poderia vê-la em segredo, voltar em silêncio. Manteríamos essas rotina por um tempo, até que enfim ela completasse uma idade que a desse mais independência para bater o pé e fazer de mim seu homem. Até lá, eu trataria de amenizar a nossa distância e conquista-la a ponto dela querer mesmo me ter como seu homem. Que fizessem de mim a nova fofoca da cidade! Sim, sou eu o homem que sai três vezes por semana em busca de uma menininha! Deixarei que pensem isso. No fim, era eu que a teria, seria a mim que ela faria feliz, não outro daquela cidade medíocre. Senhores, nesses causos, as coisas não tem importância. É só.

Há cerca de um dia, era madrugada. Um chuvisco fraco batia na janela, eu fazia anotações sobre Melinda (faço muitas longe desse caderninho), iluminado só por um abajur. Em meu escritório, silêncio total. Tudo percorria seu trajeto como sempre, fiel à rotina e a pontualidade. Nem eu, nem o divã, nem as folhas esperavam por algo que nos tirasse da comodidade da madrugada. Havia meu sofrimento maior, claro. Mas quando que eu não sofria? Toda madrugada era assim, sofrendo, suportando. Ontem, um sofrer mais amargo — Melinda iria embora e eu ficaria aqui. Mas eu tinha minhas esperanças cegas, elas faziam planos para que eu pegasse meu carro e fosse tê-la dia sim e dia não naquela cidade distante. Soava-me como um plano perfeito, como sempre o desespero me faz achar que minhas ideias absurdas são. Os senhores já devem ter percebido que eu me agarro demais às ilusões. Estão certos!

Perdido nelas, eu as escrevia em ritmo frenético no papel. Até que... O portão. Oh! Aquele mesmo companheiro que há tempos não cito aqui. Ele rangeu, anunciando, claro, que alguém havia entrado em nosso jardim frontal. Aquela fora a interrupção da madrugada, que prometia ser tão quieta e rotineira. No mesmo instante parei a mão e larguei a caneta, amuado pelo ranger ter-me feito perder as ideias que estavam tão lúcidas. Esperei alguns segundos por uma batida na porta ou uma tocada na companhia, mas nada veio. Estranhei, sobretudo pela hora que aquele portão arranjou de chiar daquela forma. Havia alguém ali, um ladrão, talvez? Levantei-me e fui espiar pela janela, onde nem mesmo o vidro embasado pela chuva impediu que eu visse minha menina parada em meu pátio. Ignorando a chuva que desabava de forma sutil sobre ela, Melinda encarava com ar questionador à porta, indo e vindo, sem saber o que fazer. Num instante, deu um passo mais a frente e chegou a levantar o braço, desistindo. Avancei pela casa, descendo as escadas e correndo até o térreo. Nem o rangido e tampouco a menina havia sido ilusão minha. Abri a porta e a vi já na saída para ir embora, com ar de desistência.

— Mel! — sussurrei, temendo que minha voz a espantasse.

Não sabia por que ela estava ali, nem queria saber. Tomei-a para mim, abraçando-a pela saudade que senti durante os dias suportados e não querendo mais larga-la, pois sabia que os próximos dias da vida também seriam sem ela e aquele abraço.

— Calma, calma! — ela pediu, colocando a cabeça para fora de meu abraço — Como sabia que eu estava aqui?

— Eu a vi! Senti-te e a vi pela janela! Oh, minha menina, basta um passo mais perto de mim e eu sentirei a sua presença! Que saudade! Venha, venha, não me deixe. Não permita que eu a largue!

— Preciso ir!

— Para onde? Diga-me, por que está aqui a essa hora?

Minha menina largou-me de vez, com a cabecinha baixa, os olhos ameaçando chorar.

— Vim para me despedir. Estou fugindo — olhava-me agora com toda seriedade — Não irei morar naquele lugar, não vou! Não me impeça de fugir, está me ouvindo? Quis vir até aqui porque pensei que o senhor gostaria de me ver antes que eu fosse. Desisti. Tive medo de bater na porta e outro alguém me ver. Queria só que o senhor me visse. Ir embora sem te falar seria uma grande traição! Mas o que poderia eu fazer? Tentei, não foi? Mas agora está bem aqui. Não vai me segurar aqui, vai? Não vai empatar que eu fuja, não é?

— Fugir? Mas para onde, minha Mel? Escute, não precisa fugir para lugar algum. Não ficará sozinha naquela cidade. Eu irei até lá, dia sim e dia não. Está louca? Fugir? Não há cabimento!

— Não deveria ter vindo aqui!

— Escute-me, escute-me!

— Estou lhe ouvindo e digo-te, não irei morar lá. O senhor não entende o quanto estou infeliz com isso? Naquele dia, falei-lhe que sempre acontecia uma desgraça maior em minha vida. Eis que chegara a próxima! Não irei permitir! Fugirei.

— Fugir será a desgraça maior! Que tem consigo para conseguir manter-se em pé por um dia que seja?

Olhei para suas mãozinhas que só seguravam uma bolsinha de nada e a maleta azul turquesa que eu a dei.

— Ficarei bem — garantiu — Vim até aqui porque considero muito o senhor, não faça com que eu me arrependa de lhe estimar tanto. Deixe que eu parta. Será melhor sair daqui na incerteza do que partir no fim de semana para aquele lugar. Ouve-me?

Agarrei-a novamente, dando um beijo em cada uma de suas bochechas. Eu respondia unicamente a ela, jamais faria algo contra a sua vontade. E lá estava, pedindo-me para deixa-la ir. Para onde? Nem ela sabia.

— E eu, Melinda? E eu? Irá me deixar e eu irei morrer. Acredita nisso? Não? Pois creia! Irei morrer se sair por aquele portão! Oh, Mel, minha Mel, amo-te por ter vindo aqui essa noite. Amo-me por ter te visto a tempo de impedir-lhe que faça essa besteira! Não a deixarei nem irá deixar-me. Jamais, meu amor!

À minha fala, ela tentou se liberar dos meus braços, cogitando que eu iria prende-la e obriga-la a voltar para a casa dos tios.

— Ouça-me, eu lhe falei que dar-te-ia o mundo, não foi? Disse-me, então, que não cria nas minhas palavras. Eu a compreendi. Disse-me, também, que elas só teriam significado quando um dia eu as executasse. Deixe-me mostrar-lhe que elas eram verídicas! Deixe que eu vá com você.

Melinda expandiu o olhar, um brilho sutil caminhando pelo par.

— O que está dizendo-me? — quis saber.

— Que vou com você. Não ficará só, tampouco desamparada. Vai fugir? Vai, mas comigo. Iremos fugir juntos.

— Deus, agora eu que lhe pergunto, está louco!? É alguém importante por aqui! Seu sumiço não passará em vão!

— Não irá! Falarão de mim em cada esquina, serei o assunto do milênio! Dirão aos filhos e aos netos sobre o homem que deixou a cidade e nunca mais foi visto. Importo-me? Nem um pouquinho! Pois, Mel, em cada uma das vezes que mencionarem o meu nome, irão colocar o teu ao lado. Serei o homem que fugiu com Melinda, seremos um nós! Não falarão de um nem do outro, mas de nós dois.

Minha menina continuava sem emitir voz, sequer parecia analisar com seriedade o que eu lhe falava.

— Melinda, se não deixar que partamos juntos, irei ser obrigado a impedir a sua fuga. Não quer isso, quer? Então, vamos! Imagine, Melinda, seremos felizes juntos. Que mal há em deixar-me ir contigo?

Havia um certo ultraje em pensar que estaria ela escolhendo entre fugir sozinha ou comigo. Eu a levaria de carro, iria dar a ela o que precisasse, então por que diabos parecia tão custoso para Melinda dizer-me um sim? Era óbvio, a qualquer um, que sua reação a minha proposta deveria ser um sorriso sincero e alegre, não o silêncio.

Por fim, quando eu já pensava em arrasta-la para dentro, sua mãozinha segurou a minha e foi ela que me arrastou para fora.

— Espere! — pedi — Tenho que pegar algo! Fique esperando-me dentro na sala.

— Como saberei que o senhor não vai trancar-me ai dentro e chamar meus tios?

— Por Deus! Entre e me espere, desço em um segundo! Quando piscar, já estarei na sua frente e partiremos logo depois. Quero ir contigo, Melinda, sabe que quero muito!

— Esperarei aqui fora. — discordou, cruzando os braços.

— De forma alguma, esperará lá dentro. Que garantia tenho eu de que não irá fugir sem mim? — perguntei-a — Há muita mais chances disso acontecer do que eu não cumprir com a minha palavra, sabe disso.

Amuada, Melinda fizera o que mandei, enquanto eu corria para pegar as poucas coisas que me importavam. Nesse trecho, senhores, sintam-se prestigiados, pois resgatei-vos. Não por amor, admito. Muito porque não poderia nunca ir e deixar para Teresa os meus escritos tão secretos. Na certa eles iriam cair na boca da cidade, ficando expostos meus pensamentos incompreendidos a todos que quisessem lê-los. Sei que o que aqui escrevi não é impuro e tampouco imoral, não tenho vergonha nem devo ter. Mas sou esperto para saber que as mentes da multidão jamais aceitariam esse meu caderno como a confissão de um amor. Julgar-me-iam um criminoso, não o amante sincero que sou. Deixemos, então, que eu parta como o homem que largou a esposa por uma jovem, serei simplório e farei que pensem que minha vida é somente mais uma edição de outros tantos casos. Jamais compreenderiam o meu amor pela minha menina!

Voltei para Melinda com esse meu caderninho, uma única muda de roupa e uma gorda quantia em dinheiro. Parei um instante para vê-la no último degrau, a minha menina e também a única coisa que de fato me era necessária. Aqueles momentos, sabia, antecediam o futuro belo que se seguiria; Melinda como a minha mulher.

— E então? — rasgou — Por que está parado aí olhando-me?

— Porque é um quadro belo demais para que alguém consiga passar reto sem aprecia-lo.

— Deus, Gregório! Como acha tempo para vir com as suas melosidades? Temos que ir! Vou chorar se não conseguir!

— Vamos, vamos, também tenho pressa!

Abrimos caminho entre o ar úmido e pesado da chuva, batendo os pés nos paralelepípedos escorregadios de água, tomando o caminho que nos levaria à liberdade. À Melinda, os passos que a livrariam de seus tios e de uma vida pacata. A mim, os passos que me permitiriam ter aquela menina para sempre.

Ali estávamos, com o carro azul servindo de casa, fugindo com a minha menina, como tantas vezes devaneei em minha cabeça! Admito, tomei a decisão de forma rápida e abrupta porque já sentia que havia a tomado bem antes. Tinha sonhado por demais com aquela mesma cena: nós dois partindo para longe dos impedimentos, indo viver o nós. Já havia dito sim nesses devaneios, não havia algo a mais para pensar, era seguir o que eu já havia cogitado fazer de certeza: ir.

Não me perdoaria se tivesse a deixado partir sem mim, seria como presenciar a sua morte. E, como já lhes contei, nosso fim tinha de ser no mesmo instante. Melinda também não aceitaria minhas desculpas se eu tivesse a impedido de fugir, odiar-me-ia para sempre, não deixando que eu fosse vê-la dia sim e dia não. Pior, talvez ela fugisse enquanto estivesse morando lá. Sua fuga sem me contar, seu desaparecimento para sempre! Diga-me, senhores, aguentaria eu sua ausência ou sua recusa em me ver? Nunca! Sabia que Melinda se findaria caso eu não fosse embora com ela, estava claro.

Deveria ser para lá das três da manhã quando já havíamos percorrido duas horas da estrada escura. Enquanto eu escondia meu sorriso de alegria por enfim tê-la, Melinda permanecia em um silêncio doloroso para mim. Estava ela com seus cabelos meio úmidos pela chuva, seus únicos pertences amontoados no colo e uma expressão de luto olhando para o caminho. Minha menina parecia não querer dizer uma única palavra, e eu ia comentando qualquer bobagem, suplicando para que ela me dissesse qualquer coisa que fosse.

— Espírito Santo — balbuciou — Por que estamos no Espírito Santo?

Olhei-a sem jeito. Estava tramando uma surpresa para ela, que, por sinal, já pensava em desistir, temeroso que ela continuasse em seu silêncio e ignorasse minha tentativa de fazê-la feliz.

— Como sabe que estamos no Espírito Santo?

— Vi em uma placa. Diga-me, para onde vamos? Faz alguma ideia, ao menos?

— Não é o nosso destino final. — expliquei-lhe — Tenho que fazer uma coisa, antes.

— Para onde vamos, depois?

Não a respondi, o que a deixou com a testa ainda mais franzida de raiva. Que minha ideia boba funcionasse!

Quando o céu abandonou a completa escuridão e assumiu um azul negro — anunciando um nascer do sol já próximo — encostei o carro no acostamento, ensaiando um sorriso convidativo para Melinda.

— Chegamos.

— Aonde? — ela perguntou, afastando-se — Não vejo nada aqui. Deveria estar com medo do senhor.

— Medo de mim? Não sou um estranho, sou?

Abri a porta do carro e sai para fazer o mesmo no lado de Melinda. Ela ainda me olhava com desconfiança, sem querer sair.

— Basta que ponha o ouvido aqui fora e ouça, sinta o cheiro... suas preocupações irão embora — garanti, oferecendo-lhe a mão — Confie em mim.

Minha menina deixou o veículo, enquanto olhava para o chão e se concentrava no barulho vindo. Era som da natureza que se repetia no interior das conchas. Poderia haver aquele mesmo ruído em outras tantas formações naturais, talvez o nosso amor tivesse aquele mesmo som.

— O mar? — ela indagou, com seu sorriso iluminado pelo início da manhã.

Eu assenti.

— Mas não o vejo.

— Ali, — apontei para o que ainda era escuridão — ele está bem ali.

Segurei-a enquanto descíamos pelo barranco de grama que nos separava da areia da praia. Melinda caiu na gargalhada quando sentiu seus pezinhos no chão fofo e logo estava tirando seus sapatinhos vermelhos para sentir melhor aos grãos úmidos. Ela era assim, gostava de tocar e cheirar o que o mundo a oferecia. Eram os seus sentidos mais aguçados e ali estava ela aproveitando-se deles.

— Uma vez pediu-me pelo mar, não foi? Estou lhe dando. Disse que lhe daria o que me pedisse. Vê? Não estava mentindo.

Melinda ia andando de ré, olhando-me rindo, nem aparentava que há minutos encarava tudo com ar mórbido. O vento batia contra ela e ao meu favor, seus cabelos voando e cobrindo o seu rosto sorridente. Queria, senhores, ser aquele sorriso ou ao menos o motivo dele. Como eu amava aquele ser! Seguia andando ao contrário, enquanto eu a acompanha e o sol subia em algum lugar.

— Não quer experimentar a água? — perguntei.

— Está muito escuro ainda! Tenho medo do que não consigo enxergar! — gritou para a distância que nos separava.

Três meses antes, tinha eu pensando em chamá-la para fugir comigo, para o mar, se os senhores bem lembram.  Estava, então, realizando meus sonhos, havíamos fugido e estávamos no mar. Poderia eu me sentir mais feliz que a observando-a naquele ponto do mundo? Tudo era tão perfeito e tão bem acabado que compreendi a felicidade de que tanto se fala e se pede!

Quando as nuvens começaram a se mostrar no céu, carregadas e cinzas, Melinda chamou-me para entrar no mar. Vi com cautela minha menina desabar sua saia na areia, abrir os botões de sua blusa e ficar apenas com a anágua branca a cobrindo. Livrei-me da minha calça e saímos nós dois de mãos dadas em direção a infinidade da água. O mar já visível com suas ondas quebrando nas pedras, Melinda ia sentindo-o com o olhar, com suas narinas e com suas canelas que tocavam a água. Permitiu-se entrar somente até o raso, com a nível batendo no máximo até suas coxas. Rejeitou meu olhar confiante que a convidava para nadar mais fundo, com ela se dando por satisfeita ali. À luz, o dia se revelava cinza por completo. Estávamos em um cantinho de mar abraçado por duas montanhas verdes, uma de cada lado nos resguardando. Ninguém ou nada passavam ali, senão alguns carros aqui e acolá cortando a estradinha. Não nos achariam se passássemos uma eternidade ali, sequer nossos ossos mortos chamariam atenção de alguém. Era uma calmaria que interrompia a agitação do mundo e do nosso passado. O lugar, tão próximo mas tão distante de Vila Doracy e de Minas Gerais.

Quando deixamos o mar pela primeira vez, chuviscava. Jamais havia visto o cabelo de Melinda tão desgrenhado quando como naquele estado, com ela olhando-me toda travessa. Tomando de carinho as minhas duas mãos, agarrou-se a mim e me beijou, pendurando-se em meu pescoço. Os cincos centímetros de altura que nos separavam foram o suficiente para que eu pudesse eleva-la ao ar.

— Eu te amo! — disse ela entre os beijos — Amo-o, amo-o! Agora que estou distante daquele lugar, sinto-me salva. Por isso, digo-te do meu amor. Eu o amo e é a única pessoa que faria qualquer coisa por mim.

Ah, que Melinda sussurrasse em meu ouvindo pedindo para voltar! Diria ela que aquilo era uma ideia boba, que já estava melhor e não gostaria mais de fugir. Que fosse! Não ficaria bravo! Eu ainda teria aquele nascer de dia. Podia eu, ela ou Deus desistir das coisas, tanto me fazia. Veria o apocalipse com um sorriso após aquele estado e aquelas palavras! Minha menina havia chegado ao ponto de me ter como o seu amor. Confessou-me e agora éramos mútuos.

Pelo resto do dia, mal sentimos fome. Ficamos estirados na areia, Melinda com sua cabeça em meu ombro, eu com meu braço envolto na sua cintura. Os oceanos da Terra estavam ajoelhados para nós, sequer poderia haver outro expectador deles em algum outro lugar distante. Nós dois éramos os únicos que olhavam o mar e ele olhava unicamente a nós dois! A vida, o verdadeiro viver, feliz e acabado, tinha gosto de fuga e de libertação.

— A essa hora, já devemos ser notícia, não acha? — ela me perguntou.

— Com certeza. Acha que seus tios irão atrás de você?

— Duvido. Ficarão com raiva, muita. Mas não se esforçarão para me achar. E a sua esposa?

Ri em um suspiro, fazendo Melinda compreender que Teresa também não iria em busca de mim.

— Bem, agora aquela cidadezinha conhece o nosso amor — pensei — Devem estar com inveja.

— De mim ou do senhor?

— De nós. Da nossa coragem de ir embora e viver o que achamos que é o certo. Mas nenhum deles irá confessar isso, é claro. Falarão mal até daqui a uns anos. Que seja!

À noitinha, eu e a minha menina nos atrevemos a ir até um vilarejo próximo e buscar por comida. Comemos nosso polvilho e pão, sentados na mesma areia, e o meu amor, tão cansadinha pela sua aventura, bocejava. Abracei-a durante todo o trajeto até o carro, enquanto ela fechava os olhos de sono. Desci com ele até a areia e a minha menina já dormia profundo deitada no banco de trás.

Cá estou eu, com sua cabecinha em meu colo. Seus pés pendem para o lado de fora do carro, com a porta aperta para deixar a maresia entrar. Escrevo com o caderninho apoiando no banco da frente, no quase completo escuro, com a pele vibrando por sentir Melinda tão perto. Faço um carinho em seu cabelo agora mesmo, apreciando seus olhinhos fechados recuperarem as forças. Sua anágua fina não secou da água e eu vejo sua pele quase nua, todo o seu traçado que a roupa mais grossa escondia de mim. Tenho-a e essa sensação de posse viverá comigo amanhã, depois e na próxima semana. Não me deixará nunca! Melinda, enfim, está comigo e estou com ela.

Senhores, como sou completo por lhes proporcionar esse fim para as coisas! Melinda está comigo, leem a isso? Da minha insistência brotou esse momento. Aqui o narro e aqui o guardo para sempre. Quem lê a isso, um dia qualquer, em um ano distante, terá que compreender, pela sucessão de tudo, que esse resultado é mais que apreciado. É merecido, é o justo. Rogo para que chegue o dia que todos saberão reconhecer esse amor e tê-lo como verdadeiro, não como uma loucura ou obsessão. Finco aqui todas essas palavras que agora são tão incompreendidas aos outros, com a esperança de que um dia elas virem arte.

Oh, o que estou falando? Perda de tempo! Largo essa folha e essa caneta! Agora preciso aproveitar a minha vida!

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