Aquários

By EuropaSanzio

877 162 103

Gregório é um homem frustrado com sua atual vida. Sempre sonhou grande e, contrariando as suas expectativas... More

Epígrafe
Primeira Parte - Post mortem, ante vitae
16 de Julho de 1950
21 de Julho de 1950
2 de Agosto de 1950
14 de Agosto de 1950
18 de Agosto de 1950
22 de Agosto de 1950
Segunda Parte - A Vida em Cor-de-Rosa
24 de Agosto de 1950
3 de Setembro de 1950
8 de Setembro de 1950
9 de Setembro de 1950
21 de Setembro de 1950
1 de Novembro de 1950
7 de Novembro de 1950
29 de Novembro de 1950
2 de Dezembro de 1950
Primeira Carta
Segunda Carta
Terceira Carta
Quarta Carta
Quinta Carta
Sexta Carta
Terceira Parte - Arroubos e Arrufos
23 de Janeiro de 1951
25 de Janeiro de 1951
28 de Janeiro de 1951
14 de Fevereiro de 1951
5 de Março de 1951
28 de Março de 1951
12 de Abril de 1951
2 de Maio de 1951
3 de Junho de 1951
Quarta Parte - A Última das Obras
20 de Junho de 1951
26 de Junho de 1951
4 de Julho de 1951
Quem foi Aquários - ou o que deveria ter sido

24 de Outubro de 1950

19 6 1
By EuropaSanzio

Terça-feira, 24 de Outubro

m mês se passou sem que eu escrevesse por aqui. Um mês, senhores! Passei três meses escrevendo com tamanha constância que não imaginei que fosse parar de forma tão abrupta, por tão longo tempo. Mas não se enganem, não abandonei esse caderno por completo. Muito pelo contrário! Das mais de trinta noites que passei sem colocar tinta nessas folhas, em mais de vinte delas eu tomei o caderninho em minha mão, abri-o, reli-o.... Quantas besteiras pus aqui, foi minha conclusão. Justamente por conta dessas releituras que resolvi me isentar da escrita. Por vergonha? Pasmem, não! Abandonei a escrita, caros, porque a maioria de meus relatos giravam em torno de um único acontecimento: Melinda. Sou de momentos, se me empolgo com algo, toda a minha dedicação se debruça sobre a tal coisa. Se tivesse eu começado um diário enquanto eu pretendia desarmar Teresa, as páginas teriam sido somente sobre ela. Assim sendo, com esses escritos virando quase que um relatório completo do que se passava entre mim e Melinda, não poderia escrever senão sobre outra coisa. E eis que nesse último mês não troquei uma única palavra com a menina! Achei incoerente de minha parte começar a contar, do nada, da forma como se conta em um diário qualquer, os pormenores do cotidiano, sem que houvesse aparição alguma da garota que serviu de base para as últimas páginas que aqui criei.

As primeiras folhas desses escritos bem que foram assim, sem rastro algum de Melinda. No entanto, o restante dos relatos quase que excluem por completo outros acontecimentos, focando unicamente em Melinda. E outra, os eventos sem ela aqui descritos são tão insignificantes! Tomei nota, por exemplo, da ida do meu filho para outra cidade. Fato inútil! Vejam bem, não queria eu chegar aqui e narrar sobre coisas de tal insignificância, por isso tornei-me ausente. Se ao menos houvesse Melinda... Mas não, nadinha! Não houve sequer convite por parte do Sr. Dorneles, muito menos eu me atrevi a ir até aquela casa. Desisti até de vigia-la em suas idas e voltas da escola. Estava tão desanimado com tudo! Continuei arcando, claro, seus estudos. Mas só! Apenas era esse laço burocrático e puramente formal que ligava aquela menina a mim. Não vi sequer razão em narrar nessas folhas minha esperança vã de que algo acontecesse. Estava dizendo um dane-se a tudo! Minha vida é sem graça mesmo, por que fingir que há algo acontecendo? Ou pior! Por que narrar meus planos e expectativas típicas de um fracassado? Poderia eu contar esses fracassos, porém tinha chegado a tal estado de lassidão e miséria que nem para isso eu estava disposto a servir. Calei-me, então.

Porém, claro, mesmo que eu já não narrasse sobre minhas esperanças ridículas, isso não eximia suas existências. Continuavam elas habitando e coexistindo em meu coração, comigo sempre avistando-as antes do sono e nas horas de tédio. E como agradeço por elas não terem me deixado por completo! Pois foram elas que me levaram até a noite de hoje. Mas o que se passou, então? Bem, hoje faz quarenta e alguns anos que Vila Doracy perdeu o status de vila e ascendeu como cidade. Até aí, nada de grande coisa. Feriado típico, pessoas na completa calmaria diurna, mas de noite há a festa, claro. Em frente a matriz, com suas barraquinhas e brinquedos rotatórios, uma réplica do que encontramos em julho durante a festa da padroeira. Pois bem, Teresa já estava para sair com o infeliz mais novo quando anunciei que eu iria junto. Ela se surpreendeu, é claro, já que eu nunca me dou ao trabalho de frequentar tais eventos. Não tem doença, hoje? Ela provocou. A verdade é que até eu estava meio surpreendido com a minha ida. Porém, meu ato extraordinário foi motivado, claro, pelas tais esperanças cegas! Não pensem que esse tenha sido meu primeiro ato instigado meramente pelas minhas expectativas.

Durante o último mês, por exemplo, fui até à biblioteca de Ouro Branco mais vezes que o normal, sempre pensando que encontraria Melinda em alguma das mesas. Fui infeliz em todas as tentativas. Amaldiçoei-me pelas tantas vezes que, no passado, a encontrei ali — antes da sua infeliz mãe morrer e antes de conhece-la — grudada em seus livrinhos, e eu não dei a mínima. Ignorava, passava batido, apenas tinha comigo Lá está a menina filha da infeliz! Seria ela minha sobrinha ou minha filha? Nenhum dos dois! Afirmava para que minha consciência se tornasse carregável. Dava-me conta, em toda ida que no presente fazia com esperança de vê-la, dessas vezes que a vi na biblioteca e não me importei. Daí, voltava para casa todo amuado, resmungando Tantas foram as vezes que a vi ali! Agora ela não aparece, somente porque agora é isso que desejo! Que azar é esse em toda a minha vida? Mas as expectativas vis me levavam de volta à biblioteca no dia seguinte. Gastava tempo também na praça, esperando que a qualquer instante a menina saísse da casa cinza e fosse fazer sei lá o que pelas mesmas bandas onde eu me encontrava. Daria ela, a mim, um sorriso? Quem sabe um aceno? Seria eu feliz com tão pouco! Só saberia se eu continuasse ali, sentando, esperando-a. Mas, claro, só tive dela as saídas que ela fazia para descer a rua, às vezes com seu batom vermelho, naquela tradição que eu tanto gostava! Era a única coisa que eu ganhava pela espera. Vinha a noitinha e eu encarava o caderninho, abria-o, relia os mesmos trechos que havia lido na noite anterior, para, no fim de tudo, perguntar-me Para que escrever algo? O que falaria, então? Que fui até a biblioteca na tentativa de causar um encontro espontâneo entre mim e Melinda? Que esperei a tarde toda na praça, achando que Melinda pudesse passar por lá? Se eu tivesse ousado escrever sobre tudo isso, os dias se passariam quase que idênticos. Poderia eu escrever dois relatos, um sobre a biblioteca e outro sobre a praça, e depois fazer dezenas de cópias, acrescentando somente dias diferentes a cada um. Pronto, voilà, eis como se passou o meu último mês! Narrações que teriam como fim unicamente o meu fracasso.

Mas se voltei a escrever aqui, senhores, foi porque as esperanças não foram embora de mim! Elas persistiram e sai eu com Teresa em um dos meus braços, nós dois formando um casal aos olhos de todo mundo.

Era um fim de tarde, eu e ela cumprimentamos a todos, assistimos à missa e depois fomos nos sentar em uma das mesas próximas à matriz. Tudo isso, claro, com minha atenção voltada ao meu entorno, nunca ao que se passava a minha frente: Bernardo pede dinheiro para fazer sei lá o que, dou-lhe conferindo o que se passava atrás do moleque. Teresa comenta sobre o falecido da senhora que há pouco havia nos cumprimentado, respondo com hum hum e levanto a cabeça de forma discreta para conquistar uma melhor visão. O diácono vem falar conosco e, durante toda a sua fala de meia hora, fico a fingir cortesia enquanto meu olhar dança pelos lados. Teresa se irrita com a minha falta de atenção e eu me irrito com sua irritação, digo que vou atrás do diácono. Mas ele não acabou de sair daqui? Ela pergunta. Esqueci de falar-lhe algo! Sobre o busto! E assim fujo da mesa. Caminho na direção que o diácono foi, para Teresa não começar com suas suspeitas absurdas, e vou indo e indo, passo em uma das barracas e enquanto espero meu gin, aproveito para espiar mais de perto as caras adolescentes que esbarram em meus olhos. Já com o meu copo, continuo a ir, indo e indo, até já estar longe o suficiente do epicentro daquela comemoração. Perfeito! Dali, por detrás da praça, as árvores me cobrem, sou um mero espectador da celebração. E como parece que há gente ali! Toda a cidade, seus três mil e poucos habitantes, reunidos em um só lugarzinho. Crianças correndo, os adultos nas mesas, os comerciantes fazendo dinheiro em suas barraquinhas. Sei que não há quase ninguém nas casas daquela cidade, até às idosas foram gastar suas solas na festa. Mesmo assim, para que me serve toda aquela gente, quando a única pessoinha que eu quero parece ter evaporado daquele mundo? Meu olhar já está cansado de procurar, arde! Mas quem disse que paro?

E então? Devem estar se perguntando. Se estou escrevendo aqui, devem supor que em algum instante dessa narração eu acho Melinda com meu olhar. Então, pensam os senhores, fui até lá e puxei um assunto. Nem um nem outro! Nem se eu a encontrasse com o olhar, iria até ela. No melhor dos meus pensamentos inventados, eu a acharia no meio da multidão e somente a acompanharia com o olhar, só, nada mais! Eu me faço por satisfeito por tão pouco! Não a abordaria na multidão, que coisa mais ridícula pensam os senhores! Estaria ela se divertindo com seus amigos ou sei lá o que. Longe de mim querer incomoda-la.

Porém, como supõem, se escrevo aqui, oh, meus caros, é porque Melinda apareceu para mim nessa noite, de fato, os senhores estão certos de pensarem assim. Mas eu não a encontrei, estava olhando na direção errada. Enquanto erroneamente cria em encontra-la vendo aquela multidão longe, dois de seus dedos, seus dedinhos! tocaram meu ombro. Tão de leve, tão espontâneos, primeiro um, depois o outro, terminando com sua unha raspando de leve o meu paletó. Mentiria se aqui dissesse que eu sabia com exatidão que aqueles dedos pertenciam à Melinda. No entanto, mentiria — também — se falasse que não notei o quanto aquele movimento, seja lá a quem pertencesse, era tão precioso e único. Virei-me certo de que encontraria algo bom, mas nunca, jamais, algo tão bom quanto Melinda. Minhas expectativas estavam mortas demais para esperar por algo assim. Todavia, lá estava ela, sem seus rabos de cavalo, com os cabelos soltos, ondas douradas encapando seu rosto. Um diadema perdido em seus fios, seu batom vermelho e brincos de pérola falsa. Atrás dela, havia apenas o lado completamente deserto da cidade. Não havia ninguém ao seu lado. Também, sabia eu, que nenhuma das janelas ao nosso redor poderiam esconder alguém nos espiando. Nunca estive tão a sós com ela. Mas, também, nunca ela tinha sido colocada de forma tão abrupta para mim. Resultado? Lá estava eu, sem saber o que lhe dizer. Suas mãozinhas já estavam recolhidas juntas ao seu vestidinho, enquanto ela olhava para cima, parecendo esperar. Esperava por algo que eu a dissesse!

Que faz aqui, sozinho? perguntou, sorrindo sem mostrar os dentes.

Precisei sacudir a cabeça para confirmar que aquilo não era um deleite meu.

Procurava pelo diácono.

Suas sobrancelhas baixaram, toda interrogativa.

O diácono? Por aqui? Mas a festa é para lá.

Vi-o vindo por aqui.

Suas sobrancelhas levantaram, toda entendedora. Como amei suas sobrancelhas naquele instante! Tornaram-se uma das coisas minhas prediletas em Melinda. Eram tão expressivas, falavam tudo de forma tão simples.

Então irei deixar o senhor procurar por ele.

Melinda deu um passo e o desespero me veio. Não podia de forma alguma deixa-la escapar. Por que fui falar aquilo? Imbecil.

Não, espere! pedi, quase a puxando pelo braço Há muito quero falar com a senhorita, mas nunca tenho a oportunidade. Acho que armam desencontros entre nós.

Ah, minha tia! exclamou, revirando os olhos O senhor percebeu? Besteira! Estou falando asneiras, esqueça. Minha tia não gostaria de saber que estou falando coisa dela.

Se eu percebi? Se a senhorita fala da mesma coisa que eu, percebi sim. E não se preocupe, não há razão para eu contar a ela algo que a senhorita me diz.

Vi um de seus pés coçando a sua perna, enquanto ela olhava para o chão, pensando nas consequências de sua fala.

O problema dela não é com o senhor, acredite. É só que ela tem aversão a tudo que é novo. Juro, basta que aconteça algo inédito para ela começar a implicar. Por isso implica tanto comigo, ainda não se acostumou com a minha presença. falou tudo sem olhar para mim, balançando a cabeça de um lado para outro. Até que, de repente, sua atenção cravou no meu rosto, parecendo ter se lembrado de algo. Mas por que o senhor queria falar comigo?

Sobre a escola! Está gostando? Como está indo?

Ah! A escola... Bem, viu minhas notas? Deve ter visto e agora quer dar-me uma bronca.

Não, não vi. Por que lhe daria uma bronca?

Olha, eu não sou a pessoa mais estudiosa desse mundo. Não pense que sou ingrata, longe disso. Faço o meu melhor na minha medida, entende? Não tenho palavras para agradecer o que o senhor me ofereceu. Sei que isso abrirá certas portas para mim, portas que eu precisarei muito que sejam abertas no futuro.

Ah, a jovialidade! Sonhos! Melinda deveria ser repleta deles. Que realizasse a todos! Que seguisse um rumo diferente do meu! Queria eu que ela me visse como provedor da vida que ela desejasse. Que ela me procurasse quando qualquer problema lhe aparecesse! Era isso que eu queria tornar-me para ela, o homem que faz suas vontades.

Más notas não fazem mal, não fazem! garanti Diga-me suas dificuldades. Em que disciplinas vai mal?

Sabe que temos aulas de francês? E eu nunca tinha visto isso na vida! As meninas da minha classe são mestras em conjugar verbos e tudo mais. Enquanto que eu só sei falar bonjour fez o biquinho e riu de sua tentativa.

E Edith Piaf? perguntei, rindo também, mas da lindeza que era ver sua boca se juntar para falar bonjour.

Que tem ela? Ah, sim! O senhor me viu escuta-la, foi mesmo. Eu escuto, sabe, mas não significa que entendo o que ela diz. Mas, na escola, o pior não é nem o francês, são as ciências naturais. Detesto! Francês eu até gosto, ao menos isso, mesmo que eu não saiba de muita coisa. Mas ciências naturais? É uma lástima! E eu me desconcentro tão rápido. Abro o livro, com toda a minha dedicação, a professora está falando e, do nada, começo a me fascinar pelas fotos dos cientistas que têm nas páginas. Meu cérebro adora procurar por isso durante as explicações, é instintivo! Logo estou eu lendo os nomes dos homens, ah, esse aqui é Michael Faraday, descobriu isso e isso aqui! Uau! Mas e suas paixões, e suas tristezas? Começo a devanear sobre a vida verdadeira que aqueles cientistas levaram. Seus experimentos e invenções são tão importantes, mas, e eles, quem eram? Ei, por que o senhor está rindo da minha desgraça?

É que tem um coração artístico. respondi, cruzando meus braços para poder admira-la como se fosse um quadro precioso Não estou rindo da tragédia. Só estou feliz.

Queria que ela recomeçasse a falar, logo! Desejava ouvir sua voz contando-me seus pensamentos bobos. Oh, abre um livro e pensa na vida dos homens importantes! Que detalhe! Amei-a ainda mais por isso. Vamos, Melinda, conte-me mais sobre suas coisas!

Então não ficará bravo comigo pelas minhas notas? quis saber Nem me achará ingrata?

Mas nunca! Nunquinha.

Tomei-me a liberdade de agarrar suas duas mãozinhas junto as minhas, como em um gesto de confiança. Mas havia tanto mais nessa demonstração; era a segunda vez que eu tinha sua pele na minha.

Mas fora as notas... não ligo para elas. Conte-me sobre a escola em si. Diga-me mais, Melinda, sou todo ouvidos.

Ela achou graça da minha fala, até eu acharia, se não fosse eu a criatura a estar passando vergonha, praticamente implorando pela fala de alguém.

Ah, fora as matérias é aquela coisa... Há pessoas. Muitas pessoas. Muitas eu já conhecia de Ouro Branco. Eu morava lá, sabia? Então. É isso, pessoas. Pessoas são, em sua maioria, difíceis de lidar, mas vou levando, não é?

E o toca discos? Está fazendo bom proveito?

Muito! exclamou de forma tão animada que é certo que ficarei feliz por uma semana inteira, apenas por saber que fui eu vetor de sua alegria Isso, claro, nas horas em que minha tia permite que eu escute músicas.

Diga-me seus gostos musicais e compro-lhe os discos que quiser.

Que bobagem! Lá tenho eu gostos. Escuto qualquer coisa, desde que tenha na coleção do meu tio e ele deixe eu ouvir. Esse é meu único critério! Sorte que ele não gosta tanto assim de Piaf, ai deixou-me com os discos dela. Mas há uns artistas que ele não deixa nem que eu olhe.

Por isso mesmo quero lhe presentear.

Rindo, ela negou com a cabeça.

Não tem que procurar o seu diácono? ela perguntou.

Ah, dane-se o diácono ela soltou uma gargalhada da minha heresia Pare de modéstia e deixe que eu lhe dê o que quiser. Diga-me algo que quer e lhe darei nesse exato instante. O que quiser.

Ela reduziu seu olhar a duas linhas, como quem procura planejar um plano de alto nível. Tão doce e tão infantil é Melinda!

Traga o mar para Vila Doracy desafiou-me Não é o eu quiser?

Permita-me reformular o seu pedido... Posso leva-la para ver o mar.

Mas aí fica muito fácil para o senhor. Ah, tudo bem, vou pedir apenas que o senhor me acompanhe até de volta à festa. Vamos deixar para lá os desejos impossíveis. Acompanhar-me é bem possível, não é?

Logo tratei de oferecer o meu braço à Melinda. Que visão sublime foi vê-la entrelaçar o seu bracinho no meu. Tinha-a tão próxima a mim. Sentia, pela primeira vez, seu cheiro da forma mais nítida que era possível. Queria perguntar-lhe se não podia eu lhe pedir qualquer coisa. Se sim ela dissesse, eu lhe pediria um lenço seu com aquela fragrância. Não era algo artificial, que se compra. Não era o seu perfume adquirido na farmácia. Era o seu cheirinho, a união de tudo por onde ela já passou; sua cama desarrumada pela manhã, a madeira da mobília que ela tocava, seu andar pela rua, suas idas e vindas. Ah, aquele cheiro era pura Melinda! E enquanto caminhávamos circundando à praça de volta à festa, eu ia vendo aquele momento único se extinguir aos poucos, a cada passo. Que chance teria eu de ter algo como aquilo novamente? Queria fazê-la falar a todo custo. Que não fosse para ter aquele aroma para todo sempre, mas que fossem suas palavras o consolo que eu daria à minha memória pelo resto da noite. Procurava eu diminuir cada vez mais o meu andar, quase reduzindo-o ao estático, sofrendo para fazer daquele encontro algo para nunca ter fim.

Por que pediu pelo mar? Era apenas para debochar da minha cara ou realmente gosta dele a ponto de desejar tê-lo sempre por perto? Responda-me com sinceridade, pois preciso saber disso antes de ir, amanhã, atrás de alguém que me faça esse serviço.

Melinda inclinou-se para o lado, tentando dar um suspiro de empurrão em mim. Tão mais próxima eu a tive ali!

O senhor é tão sério, fala tão pouco mas, do nada, solta umas coisas tão absurdas... e na sua forma, séria... acaba soando engraçado sem que perceba. comentou, para logo mudar de assunto Não sei se gostaria do mar. Nunca o vi, mas desejaria vê-lo. Então, digamos que metade foi para debochar e a outra metade foi um desejo verdadeiro.

Podemos fazer assim, então. Levo-te, um dia, para ver o mar, e se for ele de seu agrado, trago-o para a sua janela.

As pessoas ainda tão longe, as estrelas, ela entrelaçada em um dos meus braços, rindo das bobagens que eu lhe prometia. Que aquilo nunca se extinguisse!

Sabe, quando eu era criança... Ela começou sua história, que só narrarei aqui porque achei tão meiga que só posso eu querer o registro mais fiel possível de sua narrativa. Desejo que anos se passem e que quando eu abrir esse caderno, nessa exata folha, na maior aleatoriedade, possa reler essa doce história de Melinda e sorrir de sua meiguice Isso eu ainda morava em Ouro Branco. Chegou um homem, um viajante, que vinha do Acre! ela própria pareceu se espantar Ele era do Rio, tinha ido para lá trabalhar com a borracha ou algo assim. Então estava ele voltando e acabou passando por Ouro Branco. Meu tio-avô o recebeu na nossa casa e fiquei espiando as histórias que o viajante contava. Sabe o que ele disse? Que a coisa que ele mais sentia falta era do mar. Fazia décadas que não via. Ele já era bem idoso. Mas, sabe o que ele disse mais? Que quando chegou em Minas já pôde sentir o cheiro do mar. Agora eu vejo que isso era só um exagero dele, mas, naquela época, fiquei com isso na cabeça. Ouvia os mineiros reclamarem que não tinham mar, daí eu pensava, parem de falar isso, estamos mais próximos do mar que muita gente. O tal senhor até sentia o cheiro do mar daqui, não é? Ora, estamos próximos demais! Mas a bobagem maior minha foi ficar impressionada enquanto eu respirava. Ficava pensando, hum, então é esse o cheiro do mar? Devo estar tão acostumada que não noto aroma extraordinário algum. Minha tia já foi no mar, sabia? Ela acha graça dessa minha história. Disse que eu era boba e que em Minas não se via nem a cor da maresia e que estamos tão longe do mar quanto o Amazonas. Respirar esse ar perdeu um pouco da magia, porém, ao menos agora sei que, um dia, quando eu realmente estiver próxima do mar, poderei conhecer o cheiro dele, não é? Seria um pouco decepcionante nunca poder conhecer esse tal cheiro.

Poderia eu tentar dizer àquele rostinho que não havia nada mais lindo que a sua ingenuidade? Poderia, mas não, não pude responder. Muito porque eu e ela já estávamos à beira da festa. Apenas um batente nos separava do pavilhão. Agora, minha Melinda, era a vez da minha magia morrer. Eu iria perde-la ali, bem ali naquele concreto. Não, não se vá! Deixe que eu beije sua história. Que eu tire um papel do meu bolso e a anote aqui mesmo, para que eu a registre com todos os pormenores, colocarei até mesmo o movimento de suas sobrancelhas. Já lhe disse o quanto gosto delas? São tão expressivas! Dizem-me tudo de maneira tão simples. Vamos, conte-me novamente, como se fosse a primeira vez que fizesse. Escreverei tudo, tudinho! Melhor, vamos voltar ao nosso cantinho no fim da praça, só nós dois, ainda há tanto que quero saber sobre ti, há tanto que quero ouvir dessa sua boca! Bonjour! Faça para mim seu biquinho, uma última vez, rogo-lhe!

Um "ah!" Foi tudo que pude exclamar, e nem sequer foi para minha Melinda, mas sim para o infeliz que esbarrou em mim, logo quando ela me pronunciou sua última frase. Adivinhem! Adivinhem! Supondo que a vida adora fazer de mim seu brinquedo, quem ela colocaria para esbarrar em mim bem naquele momento precioso? Adivinhem!

Gregório! Exclamou o infeliz do diácono Perdoe-me!

Ah, ai está o diácono. Vou deixar o senhor falar com ele. disse Melinda, com toda a sua inocência de quem não deseja atrapalhar a ninguém.

Eu não poderia culpa-la por aquela frase. Fui eu próprio que enfiei aquilo em sua cabeça. Estaria ela pensando que minha conversa mentirosa com aquele homem era mais importante que a que eu queria continuar tendo com ela? Não, não!

Queria conversar comigo? Perguntou o infeliz do diácono.

Eu nem sequer consegui responder.

Vou indo anunciou Melinda, baixando a voz para mim em seguida Não suma novamente, pediu mesmo que se sinta amedrontado por minha tia. Apareça de vez em quando.

Sorrindo para mim, deixou-me, sobrando aos meus olhos somente a visão dela se perdendo entre as mesas. Tão repentinamente como ela apareceu para mim, na escuridão da praça, do lado oposto ao que eu procurava, lá estava ela se indo.

E então, o que queria tratar comigo? Perguntou o maldito diácono.

Oh, Deus! Que cara teria eu para desmentir aquilo e correr atrás de Melinda, minha Melinda? Chegaria nela e o que diria? Que foi um assunto rápido e já estava tudo resolvido, que queria acompanha-la pelo resto da noite, ouvir suas histórias, escutar sua voz, admirar seu sorriso e o movimento de suas sobrancelhas. Não poderia fazer nada disso, não poderia assusta-la com minhas loucuras. Eu falava de verdade quando dizia em levá-la para o mar! Que fosse eu e ela, só nós dois, em meu carro! Chegaríamos ao amanhecer e ficaríamos bem assim, nós dois, somente, sentindo a areia e respirando a maresia. E se eu corresse para alcançá-la e lhe propusesse exatamente isso? Loucura, que insanidade! No mínimo ela acharia graça. Não foi ela que disse que eu falo coisas absurdas de forma séria? E que isso faz de mim engraçado? Olha só, jamais pensei que guardasse tal detalhe em mim! Agora ficarei com esse pensamento pelo resto de minha vida. Melinda acha que sou assim, o que posso eu extrair de tal coisa? Será que esse detalhe meu é para ela algo bom? Ah, como eu queria saber mais sobre isso! Que maldição é o agora, quando não tenho mais perspectiva alguma de tê-la novamente. Disse ela, Não suma. Ela me pediu! Com voz baixa, cabeça inclinada em minha direção. Disse aquilo não por cortesia, mas porque deseja isso, de fato. Falou-me, somente para mim, em cochicho, para que ninguém mais ouvisse. Sussurrou, assim, não suma. Não sumirei! Mesmo que eu me sinta amedrontado por sua tia. O que posso eu extrair desse pedido, da sua fala mansa, da forma como suas sobrancelhas se posicionaram ao pedir tal coisa? Elas falam de maneira tão simples, mas aqui estou eu, sem saber exatamente o que queriam dizer. Estou ainda mais transtornado que antes, mas que assim seja. Sabe o que tenho, senhores? Todas essas palavrinhas de Melinda, tão carregadas de pensamentos e dela própria. Quão leve e quão pesada ela é ao mesmo tempo! Quero carrega-la e por isso mesmo corri para pôr nessas linhas tintim por tintim do que se passou.

Agora já é madrugada, há somente uma dezena de pessoas na rua, recolhendo os lixos e fechando as barracas. Em algum lugar, Melinda dorme e eu, bem, eu olho pela janela e vejo uma árvore que sei que pertence à praça. A praça! Ela que agora tem um significado todo especial a mim. Nos seus paralelepípedos eu andei com Melinda, somente suas árvores servindo de espectadores, agora esse é o único lugar do mundo que guarda a tudo isso. Como posso não sentir apego por essa praça ordinária? Por esse motivo, agora eu a elevo!

Que praça, que noite, que festa! Apesar do fim que essa história teve, um mal entendido com um diácono, não anula em nada os seus meios. Estes, meus senhores, são o que conta. Por causa deles tudo está me parecendo tão mais especial.

Continue Reading

You'll Also Like

222K 13.8K 46
ENEMIES TO LOVERS + MAFIA + LUTAS CLANDESTINAS Tudo muda para Charlotte quando ela descobre que seu melhor amigo está envolvido em lutas clandesti...
605K 39.2K 66
Jeff é frio, obscuro, antissocial, matador cruel.... sempre observava Maya andando pela floresta, ela o intrigava de um jeito que ele mesmo não conse...
13.6M 1M 72
Sinopse Elise Cortez por não conseguir ficar em nenhum emprego por falta da sua coordenação motora e azar, ela se vê sem saída ao aceitar sua...
9.8M 613K 88
Um homem insuportável de um jeito irresistível que faz um sexo que deixa todas de pernas bamba, Tem todas as mulheres que deseja aos seus pés mas te...