Parte 10

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Raquel adentrou a biblioteca do palácio sentindo seus dedos formigarem. Procurava por um novo livro e não tinha ideia de qual levar. Era uma sensação gostosa, ter a noção das quase infinitas possibilidades, saber que poderia se afundar em histórias de aventuras de seus antepassados, ou procurar conhecimento sobre magias antigas praticadas por povos anciões e distantes, ou quem sabe, talvez, estudar sobre a arte da guerra em manuais já empoeirados que haviam sido usados pelos reis de muito tempo atrás. Não tinha ideia do que poderia escolher.

Deu alguns passos em direção ao centro do cômodo, inalando o odor dos livros velhos, e olhou a sua volta. A biblioteca ficava no alto de uma das torres do castelo, era circular e a única entrada era a escada em caracol que surgia de um buraco em um canto, quase escondida. Era um ambiente aconchegante, com muitos tapetes no chão, poltronas de couro e grandes almofadas. Aqui e ali ficava uma mesa com um suporte para uma tocha, para leituras noturnas. Oposta a escada, ficava uma grande mesa de madeira, com cadeiras ao seu redor, bem iluminada pela janela logo atrás. Durante o dia, nenhuma luz era necessária fora a do sol, que adentrava o recinto pelas tiras de vidraça altas e finas, indo quase do chão até o teto, ocupando toda a extensão das paredes do salão em que não havia uma estante com livros. Só de estar ali, um sorriso surgia no rosto da princesa.

Raquel deu passos lentos pelo salão, observando os exemplares nas estantes e outros que haviam sido deixados nas escrivaninhas, a leitura interrompida. Ficou curiosa com a coleção de pergaminhos abertos em cima da grande mesa ao fundo, mostrando mapas e ilustrações de diversos territórios de Carstvo. Algumas imagens a princesa desconhecia por completo, outras lhe pareciam familiares, mas não havia visitado nenhum daqueles lugares. Observava a ilustração de uma terra de areias e dunas, quando percebeu manchas estranhas no pergaminho. Passou o dedo pelas poucas gotas avermelhadas, ainda úmidas sob seu toque. Era fácil adivinhar do que se tratava e Raquel franziu o cenho, se perguntando como aquela figura havia sido manchada de sangue.

— Eu fui atrás de um lenço.

A princesa sobressaltou-se com a voz, e girou em seus calcanhares. Seu pai havia entrado na biblioteca, sem fazer qualquer ruído, e se aproximado da mesa.

— Queria limpar essa besteira antes que alguém visse. — O Rei Lázaro continuou, dando os últimos passos lentos em direção à filha. — Não é nada.

Raquel olhou com espanto para o pai, não importava o que tinha dito, seu rosto pálido contava algo diferente. O Rei levou o lenço até o pergaminho manchado e limpou da melhor forma que pôde, tentando disfarçar as gotas. Ele deixou o corpo cair em uma das cadeiras e suspirou.

— Não tenho prática com limpeza. — disse, jogando o lenço em cima da mesa.

A princesa sentou próxima ao pai, apoiando uma das mãos em seu braço, com o olhar atento à qualquer outro sinal que o rosto do não tão velho Rei pudesse dar.

— Pai? O que está acontecendo?

Lázaro ergueu as sobrancelhas, pensando no que dizer, sem saber por onde começar. Pronunciou umas poucas sílabas, mas foi acometido por um acesso de tosse. Esticou o corpo para alcançar o lenço e o pôs sobre a boca, enquanto terminava de tossir. Não pareceu surpreso quando o pano voltou ainda mais manchado de vermelho.

— Bardô não está conseguindo me curar.

O Rei falava do curandeiro do palácio, um homem de muitas vidas, cujos conhecimentos iam para além da medicina e da magia comuns ao reino. Bardô, apesar de humano, vivera muitas eras e aprendera com diversos mestres, mas ainda existiam doenças que nem o mais sábio dos seres poderia afastar.

O semblante de Raquel tornou-se sério, pensativo.

— Ele disse quanto tempo? — ela perguntou.

— O suficiente, mas não muito.

Ambos ficaram em silêncio. A luz do sol começava a abandonar o salão e o colorido alaranjado do final de tarde tomou conta do espaço. Muitas coisas passaram pela cabeça da princesa, mas não lhe ocorreu uma das consequências mais relevantes da doença de seu pai.

— Sua mãe já reparou, mas não disse nada. — O Rei falou. — Seu irmão ainda não sabe, e acho que ainda não deveria saber.

— Ele vai sofrer. E ficar bastante contrariado se descobrir que era o único no escuro.

Lázaro abriu um sorriso triste. A filha agia exatamente da forma que havia imaginado. O que quer que estivesse sentindo, não deixava transparecer. Não queria mostrar para o pai infelicidade e preocupação, para não colocar ainda mais esse peso nas costas do Rei.

— Você terá de ser forte. — Lázaro disse.

Raquel não entendeu ao certo o que o Rei falava, seu olhar acusando sua confusão.

— Meu reinado foi fácil, pacífico. Temo que não continuará assim por muito tempo.

A compreensão finalmente tomou conta do rosto da princesa. Ela se tornaria Rainha. Responsável pelo reino. Não tinha se lembrado disso.

— Pelos deuses. — ela falou. — Nunca imaginei que deveria me preocupar com isso tão cedo.

Lázaro passou a mão pelos cabelos negros da filha, todo o orgulho que sentia surgindo em seus olhos.

— E, infelizmente, terá bastante trabalho. A paz é instável e muitos grupos já estão cansados dela. Não sei quando, nem como, mas conflitos virão.

Uma lágrima solitária escorreu pelo rosto de Raquel e ela a secou com a manga do vestido. Não queria pensar em toda a responsabilidade que em um futuro breve seria sua, e procurou qualquer outra coisa para dizer.

— O que são essas imagens? — perguntou, voltando-se em direção aos pergaminhos acima da mesa.

Lázaro meneou a cabeça, e disse:

— Bom, pensei em conhecer um pouco mais desse reino antes da oportunidade ser perdida por completo. Há tantos lugares magníficos que nunca fui.

Ele puxou para si a imagem pintura de uma cidade submersa, com construções que mais pareciam corais.

A princesa abriu um sorriso.

— Me parece ótimo.

Ela se levantou e abraçou o pai, ainda sentado,pelas costas, dando um beijo no topo de sua cabeça, sempre sem coroa.

Livro 1 - A Elfa, O Homem e a Ordem [completo]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora