1/2

192 39 3
                                    



1

Sophia Manning amava a escuridão. Era outra das coisas que a garota e o assassino possuíam em comum, além das vozes: a ausência da luz não os incomodava. Pelo contrário. Um quarto escuro e silencioso era para Sophia o que o útero de uma mãe é para um bebê ainda em formação, um lugar imune aos estímulos do mundo exterior, acalentador e seguro. Onde ela podia ser ela mesma. Abukcheech a chamara de passarinho, mas Sophia na verdade era um morcego.

Ela não tinha medo do escuro, porque não havia nada no escuro que ela desconhecesse. Sabia a posição de cada móvel, onde ficava cada porta. No escuro, Sophia sentia-se em casa.

Talvez por isso a escuridão total que tomava conta do interior da Casa Maluca não a tenha abalado nem um pouco. A porta fechou-se atrás dela com um baque alto, como a tampa de um caixão sendo pregada, e não houve outro barulho além desse. Tudo caiu em silêncio, uma quietude tão absoluta que Sophia podia ouvir as batidas de seu coração ecoando. Ficou de pé sobre o tapete de entrada, um quadrado verde que dizia: BEM-VINDO À CASA MALUCA. ABANDONE TODA A SANIDADE AQUELE QUE AQUI ENTRAR.

Isso não vai ser problema, ela pensou. Quando sua vista se ajustou à falta de luz, Sophia viu-se em uma espécie de sala de estar decorada por alguém chapado de LSD. Os móveis eram grandes e angulosos demais, dando a impressão de se moverem sozinhos. Uma poltrona de, no mínimo, dois metros de altura, repousava silenciosa em um canto, o assento tomado por uma pilha de almofadas que tinham o formato de olhos azuis esbugalhados. Um deles se moveu com um som molhado e fixou-se em Sophia, depois piscou para ela, os cílios escuros farfalhando ao fechar e abrir.

Isso não aconteceu, boneca. É só sua imaginação.

Talvez, mas isso não impediu aquele enorme olho azul estofado de piscar de novo. Sophia engoliu o pouco de saliva em sua boca. Sua garganta estava completamente seca. Ela desviou o olhar da poltrona e fitou a mesa de vidro no centro da sala de estar. Cada uma das pernas do móvel tinha a altura de Sophia e, sobre ele, repousava um cesto de bebê que balançava de leve, embora não houvesse vento. Sophia escutou um rápido som de chocalho.

Abandone toda a sanidade aquele que aqui entrar.

Percebeu que continuava parada de pé em cima do tapete verde e obrigou suas pernas a se moverem, apontando a pistola para a escuridão. Não havia sentido em tentar abafar o som de seus passos – o assassino já sabia que ela estava ali. Caminhou por aquela sala de estar alucinógena, sentindo o tempo todo aquele olho azul acompanhando cada um de seus movimentos. Contornou a mesa de vidro com o cesto de bebê, sem ousar se aproximar demais, escutando novamente o som do chocalho, dessa vez acompanhado de uma rápida risadinha que eriçou todos os pelos do seu corpo. Uma porta, cuja maçaneta tinha o formato de uma sorridente máscara de teatro, ficava ao lado de uma grande lareira apagada. Sophia seguiu naquela direção.

Estava quase na porta quando ouviu o som de passos atrás de si, seguido do barulho alto de algo caindo no chão. Sophia virou-se e atirou – kaboom! – e, por um segundo, toda a sala de estar foi iluminada por um clarão azul que projetou nas paredes as sombras distorcidas dos móveis. Nesse rápido lampejo de luz, Sophia viu um rato do tamanho de um filhote de cachorro tombar de lado, a barriga aberta pela bala que ela disparara. Depois, a escuridão voltou.

Muito bem, sua idiota. Gaste suas balas em ratos. E não se preocupe com o fato de não poder recarregar a arma.

De repente, um choro alto irrompeu da escuridão. O que quer que dormisse dentro do cesto na mesa de vidro tinha acordado com o barulho da pistola disparando, e agora produzia um barulho horrível. Gritava e berrava como se estivesse sendo torturado por pedaços de ferro em brasa. Xingando, Sophia usou o toco para baixar a maçaneta em forma de máscara. A porta abriu-se com um ranger e Sophia passou por ela quase correndo, batendo-a atrás de si.

2

Estava agora em um corredor cilíndrico. Mesmo no escuro, ela conseguia ver a faixa de tinta negra que corria em rodopios pelo chão, teto e paredes, percorrendo toda a extensão do lugar. A garota sentia como se tivesse entrado em um daqueles pêndulos usados por hipnotizadores, aqueles com uma espiral em preto e branco que parece vir na sua direção ao mesmo tempo em que dá a impressão de se afastar de você.

No fim do corredor, parecendo infinitamente longe, havia outra porta com uma maçaneta de máscara.

Sophia deu um passo, e o corredor deslocou-se para a esquerda sob seus pés, de uma maneira tão súbita que ela precisou se apoiar na porta atrás de si para não cair. Outro passo, e o lugar moveu-se para a direita. Ilusão de ótica. Merda. Sophia enfiou a pistola de volta no cós do jeans e espalmou a mão esquerda na parede para ter equilíbrio. Seria mais fácil se ela pudesse usar as duas mãos para fazer aquilo, mas, como tal luxo lhe fora negado, ela precisou se virar com o que tinha.

Colou todo o corpo à parede, comprimindo a bochecha o máximo que conseguiu contra o concreto, e seguiu em frente arrastando devagar os pés, tentando ignorar aquele vai-e-vem desconcertante do corredor. Era como andar pelo convés de um navio em alto-mar durante uma tempestade. Não demorou e ela começou a se sentir enjoada. Parou, fechou os olhos para controlar o estômago e descobriu que, com as pálpebras cerradas, o efeito ilusório do lugar desaparecia.

Colocou-se em movimento outra vez, ainda grudada à parede, mas agora com os olhos bem fechados. Era muito mais fácil quando o corredor não parecia balançar para lá e para cá. Parou de arrastar os pés apenas quando bateu com a testa em algo duro. Abriu as pálpebras e viu-se diante da porta.

- Meu Deus, o que é que um lugar assim está fazendo em um parque de diversões? – ela disse, sua voz ecoando pelas paredes.

Mas não: ninguém em sã consciência aprovaria a existência de um brinquedo com almofadas que piscavam, coisas que choravam dentro de cestos de bebês e corredores que faziam você querer vomitar as tripas até não aguentar mais. Uma Casa Maluca era diferente de uma Casa de Maluco. Havia algo de errado com aquele lugar e, enquanto recuperava o fôlego, Sophia teve certeza disso.

Como se fosse um espelho, a Casa Maluca refletia a loucura dele.

Ela balançou a cabeça para desanuviar a mente, sacou a pistola outra vez e abriu a porta no fim do corredor, imaginando que tipo de psicose esperava por ela no cômodo seguinte.

Pela primeira vez, perguntou-se se conseguiria manter a promessa que fizera à Pietra e levar Joanna sã e salva de volta para casa.

A Voz da Escuridão.Where stories live. Discover now