4

273 55 11
                                    

Sophia despertou pouco depois das 9h da manhã com mãos de ferro apertando sua bexiga. Levantou da cama e caminhou meio adormecida até o banheiro. O apartamento estava silencioso, o que significava que Chapman e Lívia ainda não tinham acordado. A garota sentou-se na porcelana fria da privada, cotovelos apoiados nos joelhos e testa pressionada contra as mãos para sustentar a cabeça pesada de sono.

Terminou, saiu do banheiro, girou nos calcanhares e voltou correndo, encarando seu reflexo no espelho da pia. Não, não tinha sido sua imaginação. Ela ergueu um pouco o queixo e lá estava: uma cicatriz logo acima da tatuagem de triângulo de galhos em seu pescoço. Parecia um sorriso de deboche, rosado e irregular, com lábios de um relevo duro que iam quase de uma orelha à outra. Com uma careta, a garota tocou a marca. No mesmo instante, uma enxurrada de memórias precipitou-se em sua direção como uma onda gigante, e Sophia não resistiu. Simplesmente deixou-as vir, as lembranças se encaixando dentro dela e formando um mosaico de uma vida que não lhe pertencia.

Sentiu cheiro de feno, de estrume e de terra. E de suor, também, porque estava abafado. Cobertores de calor a envolviam e a faziam transpirar. Ela devia estar em um lugar fechado. Um porão, talvez. Ou um celeiro. Isso, um celeiro, com uma única janela lá no alto e telhas assadas pelo sol quente. Galinhas gritavam e cavalos resfolegavam. Um gosto seco enchia sua boca: areia. Barro. Sujeira. Enormes mãos pressionavam sua nuca, machucavam seu couro cabeludo e esmagavam seu rosto contra o chão. Uma dor vermelha pulsava em seu nariz quebrado, sangue escorria de suas narinas e de seus lábios cortados. Ela não conseguia ver quem a atacava. Tentava se levantar, mas havia um joelho fincado em sua coluna, esmagando sua espinha. Um aroma enjoativo de álcool invadiu seus pulmões. Ela vomitou uma poça de um líquido amarelo.

- Fique paradinho aí – disse o homem que a mantinha no chão. – Paradinho aí.

Algo envolveu seu pescoço. Uma corda. Não, não uma corda. Um fio de arame.

- Vai ser rápido – disse o homem. O hálito de bêbado dele atingiu Sophia novamente, e ela só não colocou tudo para fora mais uma vez porque o arame apertando seu pescoço obstruía sua garganta.

O homem puxou o fio de arame para trás, e dentes enferrujados cravaram-se na carne de Sophia. Mais sangue escorreu. A cabeça da garota deu um tranco e agora ela encarava o teto do celeiro, as vigas cobertas de teias de aranha. Aqueles fios finos pareciam tecido prateado à luz do sol. Ela conseguia ver com uma clareza tremenda as aranhas lá em cima, cada uma maior que seu punho fechado, um pesadelo feito de centenas de pernas e olhos, os aracnídeos totalmente indiferentes ao que acontecia a ela. Seu agressor rasgou suas calças e uma mão caiu em sua nádega direita. Ela não gritou porque o fio de arame enrolado em seu pescoço a impedia de produzir qualquer som além de grunhidos sufocados. Unhas desceram por sua coxa e subiram outra vez, abrindo arranhões ardidos em sua pele. Sophia fechou as pálpebras, deixando as lágrimas escorrerem. Sabia o que viria em seguida.

A conexão se rompeu. A onda de memórias passou por ela, deixando para trás uma paisagem feita de nervos devastados. Sophia caiu de joelhos ao lado da privada e vomitou até sentir câimbras no estômago. Por fim, não restou nada para colocar para fora além de uma bile azeda. A garota deu descarga e sentou-se no chão gelado. Apoiou a cabeça na parede e tocou o pescoço, feliz ao perceber que a cicatriz tinha desaparecido. Naquele momento, ela compreendeu o porquê do assassino ser capaz de fazer o que fazia. Não que isso fosse desculpa, mas Sophia também seria mais do que apenas perturbada se tivesse sido estuprada pelo próprio pai quando criança.

***

O restante daquele dia transcorreu sem maiores acidentes e, por um momento, por apenas um momento e nada mais, Sophia permitiu-se ser uma pessoa normal. Tomou café da manhã sentada à mesa com Lívia e Chapman, da mesma forma que faziam quando ela tinha 10 anos e ia passar o final de semana com eles. Como se fossem uma família qualquer de Boston. Certa tarde – Sophia ainda era uma criança na época – Lívia a levara para passear no parque. Sentara a garotinha em um balanço e, enquanto a empurrava, com Sophia gritando "mais alto! Mais alto!" e ambas rindo como bobas, uma mulher se aproximara e dissera à Livy que ela tinha uma filha linda. Lívia, rosto vermelho de tanto gargalhar, virara-se para a desconhecida e respondera: "sim, eu tenho". Sophia lembrava-se muito bem do orgulho que enchera seu peito. Essa mesma exultação eufórica e alegre tomava conta de Sophia naquele domingo. A sensação de pertencer, que podia ser reconhecida, compreendida e valorizada apenas por alguém que passara um tempo longo demais vagando e perdido e que, finalmente, achava um lugar onde descansar o coração.

A Voz da Escuridão.Où les histoires vivent. Découvrez maintenant