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Vamos dar um passeio, você e eu.

Vamos aproveitar que a escuridão ainda não nos alcançou, que ainda há luz para iluminar nosso caminho, e dar um passeio. Mas, antes de começarmos, preciso que você abra os olhos. Abra-os o máximo que puder. Há algo que eu quero que você veja. Alguém que quero que conheça. Ela está bem ali no fim da rua, encolhida em um abrigo de ônibus para fugir da chuva que cai. É uma estranha, assim como você. É sozinha, da mesma forma que você também talvez seja sozinho. Ela chora. Sente medo. Frio. Está com saudades dos pais. Ela é minha amiga – minha velha e única amiga.

A maioria das pessoas nasce com um anjo da guarda. Ela nasceu com um demônio.

***

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Vamos chegar um pouquinho mais perto. Assim mesmo. Agora olhe.

Olhe bem.

Uma garotinha de olhos verdes e cabelo pretinho, não usando nada além de um vestido rosa e puído, sentada no chão sujo de um abrigo de ônibus naquela rua deserta, enquanto a chuva tamborila no teto e os relâmpagos esporádicos transformam a noite em um dia azul-elétrico. Ela tem bolhas nos pés descalços. Cicatrizes esbranquiçadas nos pulsos. Abraça os joelhos ralados de encontro ao peito e enterra neles o rosto. Lágrimas escorrem por suas bochechas. Eu a amo, e gosto de pensar que ela me ama também, por isso tento consolá-la. Digo-lhe para não ter medo e depois pronuncio a mentira mais repetida na história da humanidade:

"Vai ficar tudo bem, boneca".

Ela balança a cabeça e me afasta. Não quer saber de ser consolada. Tudo o que quer é os pais dos quais não se lembra e um casaco para protegê-la do frio. Seus cabelos escuros estão molhados de chuva – ela estava no meio da rua quando a tempestade desabou – e as gotas escorrem por suas costas como se cadáveres corressem dedos gelados pela linha de sua coluna. Um trovão rasga o céu – kábooooooom! – e ela se enrola ainda mais sobre si mesma conforme o estrondo se transforma em um eco. Se continuar a se encolher assim, logo vai desaparecer dentro das paredes do abrigo.

Escutamos passos. Pés martelando poças d'água. Não dá para dizer quem vem vindo, não com a chuva torrencial transformando o mundo em algo embaçado que lembra telas de TV quando ficam sem sinal: uma chapa cinza e chuviscada. Minha amiga não nota o som, mas você e eu podemos ouvi-lo muito bem: cléck-cléck-cléck descendo a rua. Sapatos, talvez. De repente, sinto medo. Uma garotinha sentada sozinha no chão de um abrigo de ônibus é o sonho de todo monstro – não dos bichos-papões ou das coisas debaixo da cama, mas o sonho dos pervertidos, dos pedófilos, dos estupradores e dos assassinos.

Debruço-me outra vez sobre ela. Não importa se ela quer ficar sozinha, se quer que eu vá embora e a deixe em paz. Digo-lhe que ela precisa se levantar e sair dali, rápido, porque alguém vem vindo e isso pode significar problemas. Ah, ela é perfeitamente capaz de se cuidar, sei disso. Minha razão fala que eu não preciso me preocupar, mas meu coração se recusa a escutá-la. É sempre assim.

De uma forma ou de outra, a garotinha não me dá crédito. Continua com o rosto mergulhado nos joelhos arranhados, os lábios trêmulos, o peito subindo e descendo com a respiração chorosa. Estou pronta para sacudi-la pra valer, até ela parar com aquilo e se comportar como uma boa menina crescida, quando percebo que é tarde demais. O cléck-cléck-cléck dos passos cessou. O dono dos pés está parado bem ao lado do abrigo, olhando para nós.

Ele não pode me ver, é claro, da mesma forma que é incapaz de ver você, mas pode ver a garotinha sentada no chão sujo. Em contrapartida, nós conseguimos vê-lo e, que coisa, não é um homem. É uma mulher. Primeiro notamos seu guarda-chuva, que chama tanta atenção naquela rua deserta quanto um sinalizador em uma noite escura, vermelho e berrante como um nariz no rosto branco de um palhaço. Depois suas roupas – uma batina marrom e uma cruz de madeira pendendo de um colar. A última coisa que conseguimos enxergar é seu rosto, porque ele está virado para baixo, para a menina no abrigo de ônibus. Quando ela ergue a cabeça e olha para os lados, provavelmente atrás dos pais ou responsáveis pela garotinha, percebemos que ela é jovem. Se eu tivesse que chutar, diria algo em torno de 21 anos.

Gosto dela assim que a vejo. Ela é uma exceção à minha regra de nunca simpatizar com as pessoas.

Ela se aproxima da garotinha, que sequer percebeu a presença da jovem ali. Entra no abrigo de ônibus, passa por você e eu sem nos notar, e fica de cócoras em frente à menina. Deixa de lado o guarda-chuva vermelho e estende devagar a mão direita para tocá-la. Em seu pescoço, o crucifixo de madeira pendula para lá e para cá, parecendo dançar ao ritmo da chuva que esmurra o teto do abrigo.

- Você tá bem? – pergunta a jovem enfiada na batina de freira. Sua mão paira no ar a centímetros do ombro da garotinha. – Ei, menina?

Pela primeira vez desde que correu para o interior do abrigo, a garotinha tira o rosto dos joelhos e o ergue. No começo, seus olhos verdes estão desfocados e embaçados – as íris parecem tremeluzir por um instante, as pupilas aumentam e diminuem, até que a menina consegue focalizar a mulher que se debruça sobre ela.

A mulher sorri. É um sorriso doce e genuinamente preocupado. Gosto dela um pouco mais.

- Oi. O que é que você está fazendo sozinha aqui? – pergunta a mulher.

A garotinha aperta com mais força os joelhos machucados e balança a cabeça. Não dá nenhuma resposta verbal e, de novo, a mulher vestida de freira olha para os lados. Busca os pais da criança, mas encontra apenas cortinas de chuva fria.

- Onde estão seus pais? – pergunta a mulher.

De novo, a garotinha balança a cabeça. Puxa o lábio inferior para dentro da boca e o segura ali com os dentes. Seus olhos verdes, egoístas a ponto de tomar conta de quase todo seu rosto, transformando o nariz e a boca em coisas secundárias, estão mergulhados em lágrimas.

- Tudo bem, tudo bem, não precisa chorar.

A mulher a toca no ombro. Eu estava ansiosa por esse momento. Curiosa para saber o que aconteceria quando a jovem com o Deus moribundo pendendo da cruz em seu pescoço finalmente encostasse na garotinha. E, indo contra todas as minhas ponderações, a menina não se afasta dos dedos que a alcançam. Faz justamente o contrário: desloca-se um pouco mais para perto daquela estranha de sorriso bondoso e pele de avelã.

- Tudo bem, querida – talvez incentivada pela aproximação da garotinha, a mulher agora a segura por ambos os ombros. – Qual é o seu nome?

Um sussurro na chuva – as letras tropeçam nos dentes da garotinha e depois escorrem quase silenciosas de seus lábios que tremem:

- Sophia.

- Certo. Sophia – repete a mulher bem devagar. Parece provar o sabor do nome. – Eu tenho uma filha da sua idade, sabia? Você deve ter 4, talvez 5 anos, não é? – a primeira opção é a correta, mas a garotinha não responde. – O que acha de eu levar você para conhecê-la? Eu moro aqui perto. Assim a gente sai dessa chuva e procura por seus pais em um lugar seco. O que me diz?

Mais uma vez, a garotinha não diz nada. Não com palavras. Só faz que sim com a cabeça.

- Muito bem – disse a mulher.

Ela estende os braços na direção da garotinha e a criança faz o mesmo com os dela, passando-os em torno do pescoço da mulher. A jovem a levanta no colo. A menina pesa tanto quanto um travesseiro de penas, e envolve a cintura da freira com as pernas pálidas. Fica pendurada ali feito uma mochilinha cor-de-rosa.

A mulher passa um braço pelas costas da menina e usa a mão livre para erguer o guarda-chuva e cobri-las. A garotinha ainda treme de frio no colo da jovem, e pressiona um pouco mais o corpo no dela em busca de calor. Parou de chorar.

- Vamos, querida – disse a jovem freira, saindo com a garotinha do abrigo para a tempestade. As gotas batem ferozes contra o guarda-chuva. – Vai ficar tudo bem. Prometo. Vai ficar tudo bem.

Viu só? Eu disse: a mentira mais repetida na história da humanidade.  

A Voz da Escuridão.Where stories live. Discover now