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Aos domingos, o pequeno lago atrás do convento de Nossa Senhora do Sagrado Coração lotava de famílias que saíam da missa e iam para lá aproveitar o dia. O gramado ficava cheio de tolhas de piquenique, o pedalinho em forma de cisne agitava as águas, as crianças riam e brincavam e os adultos sentavam à sombra de alguma árvore e sorriam enquanto olhavam seus filhos correndo pra lá e para cá, cheios da energia inesgotável e alegre da infância. Durante o resto da semana, no entanto, o lugar era vazio e tranquilo, e Sophia e Pietra costumavam sentar à beira do lago nos fins de tarde, atirando pedrinhas e conversando até depois da noite cair, quando Miranda gritava para as meninas entrarem, tomarem um banho e se prepararem para jantar.

Pietra estava lá agora, de costas para Sophia, as pernas morenas mergulhadas nas águas quase até as coxas. Sophia foi até ela e sentou-se ao seu lado.

- Oi – disse Sophia.

- Oi – Pietra olhava para os pés que espirravam pequenas gotas de água no ar. – Prove a água. Está ótima.

Sophia tirou suas botas cheias de sangue, arregaçou as calças sujas de terra até os joelhos e mergulhou as pernas pálidas no lago. Pietra tinha razão: a água estava ótima.

- O que aconteceu aí? – Pietra apontou o tornozelo direito de Sophia, torcido a tal ponto que os dedos do pé quase apontavam para trás.

- Quebrei – disse Sophia. – Tropecei em algumas raízes. Foi estupidez.

- Sempre a desastrada.

Deram as mãos. Grilos cantavam ao redor e libélulas desferiam pequenos rasantes no lago, abrindo cicatrizes na superfície da água com suas patas e depois ganhando altura, as asas transparentes batendo e espirrando gotas. Galhos estalaram nas árvores à esquerda e um veado saiu delas, negro e balançando com calma uma galhada gigantesca. Deitou-se perto de Sophia e ela lhe acariciou o focinho. O animal soltou um som satisfeito do fundo da garganta e fechou os olhos diante do toque da garota. Ao lado dela, Pietra agitou os pés e criou pequenas ondinhas que transformaram os reflexos das duas em borrões de cores.

- Você e eu estamos desaparecendo – disse Pietra.

- Você não está desaparecendo – disse Sophia. – Você é o quadro mais nítido na parede da minha memória.

Pietra deitou a cabeça um pouco para o lado, um sorrisinho nos lábios.

- Suas paredes estão queimadas – disse Pietra. – Você ateou fogo em si mesma.

- Eu não me importo em queimar.

Devagar, Pietra se debruçou na direção dela. Sophia se inclinou de volta e fechou os olhos, pronta para receber os lábios de Pietra. O que veio não foi um beijo, mas sim uma mordida de ferro em seu estômago. A dor repentina fez Sophia se dobrar para frente e abrir as pálpebras. Encontrou Pietra com o braço estendido, a adaga em sua mão enfiada até o cabo no abdômen de Sophia.

Antes que Sophia pudesse perguntar a Pietra porque ela faria uma coisa daquelas, Pietra a agarrou pelos cabelos e a atirou no lago. A água, até então quente, envolveu a pele de Sophia como se fosse metal gelado, entrando em seu nariz e em sua boca. Ela tentou voltar à superfície, batendo os braços com desespero, mas tudo o que fazia era mergulhar mais e mais. O sangue saía de seu abdômen ferido e se espalhava, cobrindo tudo com uma névoa vermelha. Através dela, Sophia conseguia ver a silhueta escura de Pietra de pé às margens do lago, a adaga ainda em sua mão. Ao seu lado, o wendigo de galhada interminável, ambos observando Sophia afundar na escuridão.

A Voz da Escuridão.Onde as histórias ganham vida. Descobre agora