Lenços velhos

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Todos nós somos chamados, pelo menos uma vez na vida, para fazer parte de um papel que nos supera, os funerais. Entregar as memórias à cova mais profunda, dói. Dói como se o simples brilho do reflexo das fotografias nos queimasse por dentro, e não sabemos porquê.

Tentamos atribuir a culpa a alguém, mas alguém é insuficiente, é vago. Mentira, sabemos o que foi. Foi o facto de, ao nascimento, a criança não ter um sinal a dizer "Atenção, eventualmente acabo.", e não sabemos como pôde ter sido o Criador tão esquecido.

Não aceitamos que alguém morra antes de lhe ter entregue flores em vida. Mas adia-se todos os dias, é sempre assim que acontece. A promessa das flores fica sempre para o fim. São as flores do remorso, pela pessoa já não estar cá para as ver. Aí sim, de facto, cumprimos a promessa, mas não foi a tempo.

Foi tarde e para nós é apenas uma flor, mas para a nossa consciência, a flor parece pesar como duzentas toneladas de cadáveres que nos abrirão a próxima cova, até que nos aconteça o mesmo e os outros morram com remorsos, e assim sucessivamente. Juramos e morremos uns pelos outros e não sabemos porquê.

Reúne-se toda a gente a chorar a segurar lenços bordados de misericórdia pelo pobre falecido. Misericórdia era coisa que o morto devia ter pronunciado por deixar tanta gente magoada. Lá do fundo, com certeza, ousaria gritar "Riam-se!", mas afinal, porque é que não se ouve?

Porque está soterrado pelas as flores da misericórdia e de adornos fartos de compaixão por aquilo que foi e que não foi em vida. Morreu rodeado de lamentações e de fungares pesados das velhas vestidas de preto, que maneira tão suave de se dizer adeus. De tão exausta que a cerimónia se torna que me começo a perguntar: "Mas porquê?"

Se começa tem de acabar, essa é a justificação mais racional para a morte, mas, por convenção, a morte é considerada como escura, pelo que, as justificações da morte são sempre postas no mundo do obscurantismo. Porém, continuamos sem saber porque é que as coisas foram postas em cima da mesa deste modo e não de outro.

Estamos sempre insatisfeitos com esta questão, por mais bonecos e teorias que se criem para lidarmos com esta situação de uma forma consoladora e pacífica, nada parece travar a velocidade a que a dor nos consome. Mas a dor pode ser conduzida pelo modo de como encaramos a mesma.

Se usamos o humor para camuflar a crueldade dos factos torna-se algo menos pesado, no entanto, na pior das hipóteses, seríamos mortos também. Seríamos mortos por ter sido moralmente incorretos. Mas a moral foi inventada para dar um ar de respeito às coisas. Não para lidar com situações fora do domínio racional.

Onde todos choram por um, o morto não pode, infelizmente, ter compaixão pelas pessoas que deixou a chorar. O morto morreu triste por ter arruinado o dia a dezenas ou centenas de gente ou de carteiras. Se fossem duas ou três era menos mau.

Ainda ninguém se levantou da campa e vos disse "Não fiqueis assim, só morri.". Mas porque não imaginar gestos destes para encarar um fim? Em vez de usar palavras pesadíssimas que esmaguem ainda mais o morto, e que, de tão repetidas, tornam-se numa comichão irritante para todos que acabam por perder o sentido. O único sentido que despertou no morto foi dado pela comichão que, nos ouvidos do cadáver já mais que surdo, ainda conseguiu ouvir o "Amén".

Mistifórios do Hoje: Uma Sova de 2017Where stories live. Discover now