- Eu tinha um amigo como o seu – disse Sophia. – Não uma tartaruga, mas um coelho. Ele era cor-de-rosa e se chamava Furgus.

Miranda olhou mais uma vez de Sophia para Joanna, como alguém que termina de montar um móvel e dá uma última conferida nos parafusos para se certificar de que tudo não vai desabar no chão e, parecendo satisfeita com seu trabalho, afastou-se, deixando as duas sozinhas.

Sophia puxou os cabelos para trás da orelha e sorriu para Joanna.

- Como é o nome do seu amigo?

- Lancelot – disse Joanna. Falou rápido. Parecia ainda estar decidindo se confiava ou não em Sophia.

- Como nas histórias do Rei Arthur?

- Uhum. Eu li todas elas.

Sophia ergueu as sobrancelhas, surpresa.

- Quantos anos você tem?

- Quatro – disse Joanna. – Mas Pietra sempre falou que eu sou inteligente demais para minha idade. E que isso vai me meter em encrencas.

- Sua mãe também era inteligente demais para a idade dela. Mais inteligente do que eu, pelo menos. Só que isso meteu nós duas em encrencas.

Joanna deitou a cabecinha um pouco para o lado, seus cachos arrumados e presos por um lacinho azul deslizando com o movimento.

- Seus olhos são tão bonitos – ela disse.

- Obrigada. Os seus também são.

- Você é mesmo amiga de Pietra? Porque mamãe conta tudo para mim, e ela nunca falou de você.

Sophia fez uma careta. Um pouco daquele gosto ácido de vômito continuava em sua boca, e ela bebeu o último gole d'água do copo. Foi o suficiente para levar embora o amargor, embora houvesse ainda um sabor ruim em sua língua, e que não tinha nada a ver com as intempéries de seu estômago. Era um sabor de cinzas e poeira, de raiva e ressentimento, e estava relacionado às palavras de Joanna: minha mãe nunca falou de você para mim.

- Nós éramos boas amigas – Sophia colocou o copo na mesa do refeitório. – A gente só se afastou – assim soava melhor do que "eu abandonei sua mãe".

Joanna olhou por cima do ombro, para Miranda sentada ao lado da jovem freira, e pareceu decidir que era seguro se aproximar de Sophia. A criança fez isso com passos hesitantes no começo, depois um pouquinho mais rápido, até que quase correu para cima de Sophia, como um carro que demora para pegar no tranco mas que, depois que o motor finalmente liga, funciona melhor que o esperado.

- Essa é minha lagarta – a menina pulou na cadeira ao lado de Sophia e estendeu para ela o potinho de plástico com tampinha vermelha. Sophia franziu os olhos e viu lá dentro uma lagarta gorda e colorida se arrastando com sofreguidão. – Vovó pegou para mim. Falei para mamãe que o nome dela é Pietra, mas é mentira.

- E qual é o nome dela?

A garotinha deu de ombros.

- Não sei. Acho que não vou dar um nome para ela, porque vou soltá-la logo.

Sophia assentiu. Era a mente da criança – inteligente demais para a idade, exatamente como Pietra fora, mas ainda assim uma criança – dizendo-lhe: não se apegue. Quando as coisas não têm um nome para seu coração lembrar, fica mais fácil de deixá-las ir embora. Não se apegue.

- Podemos soltá-la no lago quando a chuva passar – disse Sophia, devolvendo o pote com a lagarta sem nome para Joanna. – O que acha?

Joanna fez que sim, entusiasmada, e Sophia sorriu. Assim de perto dava para notar as diferenças entre a criança e Pietra, embora a semelhança continuasse espantosa. Joanna tinha o queixo mais proeminente e o nariz um pouco mais chato, enquanto que com Pietra era exatamente o contrário. Havia uma pinta acima da sobrancelha de Pietra, na forma de um continente imaginário, e a testa de Joanna era livre de manchas. Coisinhas pequenas, que passariam despercebidas por qualquer um – talvez nem mesmo Miranda tenha notado aqueles detalhes – mas não por Sophia.

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