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Capítulo oito

–Acabei de notar – disse Láquesis, animada. – Raramente uma estopa passa pelo rastelo, como esta – ela flutuou, seu cetro em forma de foice lampejando uma luz baça pela Câmara de Tecer. Suas saias rodopiavam em torno de pernas nuas, e a parte de cima de seu traje cobria apenas um dos seios, deixando o outro à mostra, tal qual as mortais de alguma cidade-estado – o estilo povoou suas fantasias, mas ela não conseguia se lembrar de onde. Talvez ela tivesse usado a foice para cortar os fios dos destinos dessas mulheres, há muito, muito tempo. Em momentos como aquele, ela apreciava a liberdade de movimentos que o traje lhe conferia. Ela girou a foice de um lado para o outro, de modo ameaçador.

– Alguém escapou de seu destino, o destino que nós decretamos? Impossível!

– Não, não é isso. O destino dele está selado, mas as circunstâncias que o compõem não são as que eu esperava.

– Você cometeu algum erro? – Átropos se deliciava com sua irmã em apuros. – Eu já lhe disse que você precisa cortar com mais cuidado, pensar de forma mais ampla e, somente então, começar seu trabalho. Afinal, Cloto desfia o destino, eu determino sua duração e você... é o carrasco.

– É mesmo? – Láquesis disse, bufando com desdém. – Eu me divirto bastante. Você e Cloto são muito zelosas e nunca têm prazer algum em suas criações.

– Criações? É assim que você chama as estipulações da sorte de um mundo inteiro, cheio de mortais e deuses?

– Você esqueceu de mencionar os animais da floresta e os peixes do oceano – disse Láquesis.

– Só você tem prazer em decidir qual deles acabará como jantar dos mortais – Átropos passou as longas garras por um fio com as cores do arco-íris, como se acariciasse um animal de estimação. A névoa negra, que fazia a vez de seus pés e pernas, redemoinhou em torno de sua cintura, então foi se acalmando à medida que ela se ia se intrigando cada vez mais com o que sua irmã dizia.

– Ou como o amante de um mortal – Láquesis disse, sorrindo tolamente. – A fim de que você não se esqueça de algumas de minhas uniões mais memoráveis e suas respectivas ninhadas.

– Só você poderia se orgulhar de coisas como essas. Forjar destinos é um trabalho sério, um trabalho ao qual você precisa ser metodicamente aplicada ou o mundo desabaria. Tudo deve se encaixar perfeitamente. As peças não podem ter bordas afiadas ou os fios de nosso labor podem acabar se rompendo.

Láquesis desdenhou de tanta baboseira com um abano de sua graciosa mão. Ela tinha os dedos incrivelmente fortes, assim como suas irmãs, se assim pudessem ser descritos os prolongamentos ósseos de Cloto ou as garras de Átropos, que vinham se protuberando de seus corpos avantajados ao longo dos séculos de labuta na Câmara de Tecer. No entanto, muito mais do que mera manipulação era dedicado às tapeçarias de pura inevitabilidade que elas criavam de tempo em tempo. Suas irmãs não apreciavam a necessidade de se deleitar com um trabalho tal, fazendo mais do que simplesmente decretar uma morte ou decidir uma guerra baseando-se tão somente em valentia ou covardia. Elas controlavam os mortais e, além de tudo, também os deuses, que se revelaram ainda mais divertidos.

– A próxima coisa que você dirá é que quer ressuscitar os Titãs – Átropos disse.

Láquesis pensou por alguns instantes.

– A última guerra entre deuses e Titãs foi divertida. Ocupou nossos pensamentos e nosso trabalho por alguns séculos.

– Mas Cloto e eu colocamos um fim nela. Você teria permitido que ela continuasse. Há mais do que mero desfrute pessoal em nosso dever.

– O que mais pode haver? – Láquesis perguntou. – Veja o fio que tanto me interessou.

– O qual você tinha mencionado?

– Kratos é o mais fascinante de todos. Eu sei que você observou o fio. Não negue! Um mortal, um mortal que tomou os poderes do deus que matou, tornando-se ele próprio um deus.

– Hummm – Átropos disse, olhando por cima dos ombros inclinados de sua irmã e tocando a linha de ébano que causara tamanha comoção. As vibrações cessaram, mesmo com ela pressionando a garra de seu polegar contra o fio do destino dele. – Ele está morto.

– Morrendo – Láquesis corrigiu. – Ele está confinado à espera do Submundo e das torturas rudes de Hades. Eu deveria…

– Você deveria prestar atenção em seu devido trabalho e parar de perder tempo com esse brinquedo – Átropos retrucou. – Quanto mais você desperdiçar seu esforço em mortais inválidos como Kratos, maior será o trabalho que eu e Cloto teremos de assumir.

– Kratos é um deus que monopoliza as atenções para si. Nós estabelecemos que ele morresse e ele morreu, mas não da forma esperada. Que divertido! Zeus está se tornando mais irracional a cada dia, a diversão é cada vez melhor de se assistir.

– Um trabalho como o nosso não é entretenimento.

– Não precisa ser totalmente entediante, tampouco – Láquesis reclamou. – Precisamos de mais distrações do que meros destinos ordinários e de mau gosto que tantos mortais suportam.

– Você fala como se aguardasse ansiosa pelos dias da Grande Guerra – Átropos havia terminado um novo fio, entressorriu de satisfação por um trabalho feito de maneira competente e, então, estendeu a mão para tocar o fio do destino que embrulhava a sorte de Kratos. – Nada. Ele está preso ao Submundo, que tenha uma boa viagem. Ele a distraiu demais de seu verdadeiro trabalho.

– É você quem manda, irmã – disse Láquesis. Ela passou a esperar que Átropos medisse um destino bem mais complexo, que dizia respeito a um pequeno vulcão na península em forma de bota. Láquesis assentiu com a cabeça. Muitos dos destinos terminaram com os mortais sendo revestidos por blocos de lava. Ela girou seu gancho ao léu, a lâmina afiada despencando – quase – sobre muitos dos fios. Se ela não os cortasse, aqueles que estivessem presos nos blocos de lava não morreriam, permaneceriam encerrados e com vida. Quais, porém, mereciam tal sorte? Tanto planejamento havia acabado em tamanho desastre. As vidas dos mortais tiveram de ser retiradas e chegaram ao fim naquele exato instante, com exceção daquelas que podiam ser guardadas para distrações mais intrincadas. Láquesis queria brincar com os sobreviventes, mas sabia que suas irmãs jamais permitiriam isso. Elas sempre lhe negaram maiores experimentações.

Será que a consideravam uma igual? Láquesis franziu a testa ao se questionar sobre isso. A habilidade de Cloto para desfiar destinos era grande, mas Átropos? Tudo o que ela fazia era tirar as medidas da longevidade dos mortais. Qualquer um poderia fazer isso. Que pensassem como quisessem. Ela era mais do que uma igual, executava o que as outras duas não seriam capazes – a real entrega das almas a Hades.

Láquesis acariciou o fio que ainda vinculava Kratos à sorte dele. Quando Átropos desviou o olhar, novamente absorta em seu trabalho, Láquesis o balançou com ímpeto e deixou que a leve vibração desaparecesse rumo ao Submundo. Com um suspiro contente, ela sabia que o resultado seria de curta duração, mas lhe conferiu entusiasmo suficiente para se intrometer no que Cloto e Átropos disseram ser inútil.

Não poderia haver dúvida alguma quanto ao destino de Kratos. Tampouco havia razão para que não fosse também divertido – mesmo excitante – e quebrasse o tédio de controlar tantas desgraças mundanas.

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