40. Luto

2.8K 281 15
                                    


Lá estávamos, Robert e eu, na frente de toda a classe dando início a nossa apresentação. Dona Celina estava radiante com o livro que
havíamos escolhido, pois, como supúnhamos, a maioria das duplas optou
por "Sonhos de uma noite de Verão" e "Romeu e Julieta". Foi uma seção Shaksperiana digna de enfadar qualquer amante da literatura, resumos ruins de livros tão bons.
Beatriz e o pareceiro dela também haviam tornado o ar mais respirável para nossa professora, com uma bela apresentação de "Os Miseráveis".
Como havíamos combinado, Robert foi quem começou a apresentação, eu só entraria em cena aos quarenta e quatro minutos do segundo tempo, quando todo mundo estivesse cansado o suficiente para não prestar mais atenção.
- "Os Sofrimentos do Jovem Werther" não deve ser lido apenas como um livro que conta uma bela história de amor - dizia Rob, a voz confiante, imperativa.
A sala toda estava atenta a cada palavra que ele dizia, quase hipnotizados.
Como ele conseguia fazer aquilo? Como mantinha a calma? Parecia até o Bonner na bancada do Jornal Nacional. Eu estava tremendo como um filhotinho de cachorro assustado. Detestava ter que falar em público, detestava a ideia de tantas pessoas me olhando ao mesmo.
- Além de todo o romance latente em cada pagina, Goethe buscou também o enfoque político e social - continuou o apresentador de telejornal mais lindo do mundo. - Werther fala sobre seu descontentamento com a alta burguesia da época e sobre a vida das
pessoas simples. Goethe também aborda o culto à natureza, afinal, Werther era um amante declarado e enaltece em suas cartas a riqueza da natureza que o cerca no vilarejo para o qual se muda...
Eu poderia deixar que Robert fizesse toda a apresentação sozinho. Ele estava saindo-­se muito bem - o que não era nenhuma surpresa. Mas, dona Celina insistira em dizer que como era um trabalho em dupla os
dois componentes deviam falar durante a apresentação.
Que droga!
Assim que Robert parou de falar percebi que havia chegado a minha vez.
Comecei a transpirar por baixo das roupas, minha visão perdeu o foco, minha voz encontrava dificuldade para abrir passagem pela minha garganta e eu sabia que não ia conseguir fazer aquilo. Olhei para Robert ao
meu lado, e ele me encorajou com um sorriso protetor.
- Eh... eh... - pronto, eu não conhecia mais nenhuma palavra, esquecera­-me completamente como se pratica a arte da comunicação verbal. - Eh... - balbucie mais uma vez, apavorada. Eu sabia exatamente o que deveria dizer, havia ensaiado cada palavra com Robert, mas, de repente, eu não sentia nenhuma vontade de falar.
Eu estava mentalmente paralisada e não era
apenas a vergonha que me mantinha ali, travada ridiculamente, enquanto meus colegas, a professora e Robert, esperavam até que eu começasse a falar. Havia algo além do pavor, além da timidez. Havia uma lembrança que me veio à mente no momento mais inoportuno, e me feriu terrivelmente, como o corte preciso de um bisturi nas mãos de um psicopata.

"Sara está morta!" A voz impertinente em minha cabeça começou a sussurrar sem piedade "Ela está morta, você consegue entender isso?"
A sala permanecia em silencio, eu até podia ouvir o relógio grande e velho pregado acima da porta da sala. Tic ­tac, tic­ tac. Meu coração seguia a mesma batida repetitiva. Tic ­tac, tic­ tac.
" O que você está fazendo aqui? Sara está morta, Ísi, para sempre."
Só agora eu realmente entendia o que aquilo significava.
Desde que Robert e eu havíamos começado a ler Os sofrimentos do jovem Werther, eu havia me identificado muito com o protagonista. Seus pensamentos, sua visão do mundo, seu amor incondicional por Charlotte, a saudade de seu amigo distante. Mas agora a verdade caía sobre mim com um peso esmagador... Nessa história eu não era Werther, nem nunca seria. Eu era Wilhelm, a pessoa que chorava pela morte de um amigo. Werther havia se suicidado, encontrando na morte uma forma de escapar da dor. Sara tinha feito a mesma coisa; partira em meu lugar para evitar a dor de me perder.
Tentei imaginar o que Wilhelm devia ter sentido quando recebeu a trágica notícia. Em quantas partes estilhaçou­-se seu coração ao saber da morte de seu melhor amigo? Eu nunca havia parado pra refletir a história sob esta perspectiva, nunca havia parado pra pensar "nos sofrimentos do jovem Wilhelm".
Toda a classe me olhava ansiosa, esperando...
Observei-­os por um instante. E não pude suportar aqueles olhares que me encaravam, olhos que jamais entenderiam minha dor, que jamais compreenderiam a perda de Wilhelm. Eu quis gritar, dizer a eles o quanto nossa vida pouco significa, o quanto nosso tempo neste mundo é limitado, dizer­-lhes que a morte acompanha nossa sombra e repousa nosso espírito num sono
profundo, mesmo que nosso coração esteja cheio de vida. Mas do que adiantaria dizer-­lhes qualquer uma dessas coisas? Ninguém se importaria.
Ninguém se importa. Ninguém da a mínima para a morte, até que ela te olhe nos olhos, até que te tome pelas mãos... então, você fica apavorado.
Eu havia estado face a face com a morte e confesso que ela não me pareceu tão terrível ao me sorrir, e me pedir que a acompanhasse. A morte era calma, branda, um raio de sol que emana descanso. Era como uma criança inocente, perdida, implorando por companhia, desejosa de alguém que pudesse lhe dar carinho, alguém que fosse capaz de ficar com ela. Eu quis ser
essa pessoa. Quase fui essa pessoa, mas a lembrança de um anjo não me permitiu abandonar este mundo, não permitiu que eu fosse a mãe adotiva daquela criança solitária e doce. Então a criança enfureceu-­se com minha recusa, irritou-­se com minha falta de amor e resolveu encontrar uma substituta para o cargo que eu não quis preencher.
Sara foi a escolhida.
Minha Sara.
A criança tomou Sara pelas mãos, e com um sorriso assustadoramente doce e perverso, doloroso e vingativo, tomou Sara de mim. Para sempre.
"A morte é o anjo mais cruel que existe", constatei, quase sem conseguir respirar.
Os minutos passavam no relógio, tic­ tac, tic ­tac. E tudo me parecia uma terrível perda de tempo, uma apresentação idiota, para um bando de alunos idiotas.
O que eu estava fazendo ali? Por que estava gastando tantos minutos com aquela gente?
Robert caminhou dois passos até mim, o rosto vincado de dor e preocupação.
- O que está havendo, Ísi? - perguntou num sussurro. Ele sentia minha tristeza.
Permiti que meus olhos fitassem seu rosto por um momento. Ah! Como ele era maravilhosamente lindo, mesmo quando seus olhos estavam injustamente tristes, como agora.
"Você não tem este direito", gritei para mim mesma em pensamento.
Eu não tinha o direito de fazê-­lo sofrer junto comigo, não tinha o direito de deixar que o vazio, a dor, a tristeza e o luto em minha alma alastrassem­-se também para aquele ser magnífico que tinha como único pecado amar-­me além de todos os limites.
Sem responder à pergunta de Robert, saí correndo em disparada para fora da sala, deixando para trás aqueles rostos insensíveis e o rosto mais lindo e triste, que eu não suportava ver.

IntrínsecoWhere stories live. Discover now